home Didascálias, TEATRO Climas – TNSJ 18/12/2016

Climas – TNSJ 18/12/2016

A companhia portuense Circolando distingue-se, desde a sua criação em 1999, pelo cariz do trabalho que sempre apresentou, apostando na fluidez de formatos e registos cénicos, com resultados consistentemente emotivos e fascinantes, mesmo quando desafiam o espectador, colocado perante a surpresa, o absurdo e a abstracção.

Desde que vimos Casa Abrigo, no ano já longínquo de 2008, em pleno Mosteiro de S. Bento da Vitória, ficamos rendidos à mestria com que convocam o público, com a sua “transdisciplinaridade (…) entre a dança e o teatro, com forte apelo aos contributos de outros campos da criação: poesia, artes plásticas, música, vídeo.” (apresentação no sitio oficial).

Mantendo esta dinâmica coerência criativa, surge Climas, derradeiro espectáculo de um ano de bela safra no Teatro Nacional de S. João, que marca o regresso da companhia aos palcos mais convencionais. Desta feita, a inspiração deriva do Diário das Nuvens de Johann Wolfgang von Goethe, em que o alemão discorre poeticamente acerca do clima, pretexto para uma meditação sobre a natureza humana, a percepção da Natureza que a acolhe e o efeito dessa inevitável dialéctica sobre a existência, como uma longa e encapotada parábola. Outras leituras ajudaram a construir a estruturar a criação, como os diários de Raul Brandão ou os escritos de Henry Michaux.

“O clima é uma das variáveis mais potentes a actuar sobre nós”, relembra André Braga. “Pretendemos questionar a panela de pressão em que vivemos, seja ela climática ou social”. (Expresso, 8 de Dezembro de 2016)

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O pulsar do espectáculo, “uma espécie de carta metereológica com diferentes centros de altas e baixas pressões”, onde momentos de grande intensidade são equilibrados pelo silêncio quase absoluto e por personagens mais burlescas (a japonesa que vê unicórnios é de ir às lágrimas), nasce desse choque inevitável entre o perene e a diáfano, o elementar e o global, a presença avassaladora do Tempo e a fragilidade do Corpo, a volatilidade da narrativa a que convencionamos chamar Vida.

É este o cerne de Climas, em que “foi dado lugar central à improvisação”, segunda a dupla de directores artísticos. Somos convocados para o que aparenta ser uma relaxada reunião de amigos, de férias na montanha, num local indistinto e isolado, onde o som do ambiente prevalece desde cedo.

De súbito, a calma transfigura-se em montra de verdadeira possessão, induzida pelas cambiantes climatéricas, envolventes sónica e visualmente. Como joguetes de um qualquer ente obscuro que escapa ao seu controlo, os seis actores libertam-se de movimentos (convulsos e dissonantes) e discurso, seguidos do ruído que produzem e da inusitada e incessante banda sonora, desde o

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minimalismo à la Cage, à valsa de Waldteufel, ao rock a roçar o punk, com direito a guitarra e bateria in loco e mensagem a condizer (“Rock N´ Roll is dead, but i´m still alive”), num dos momentos mais incríveis e surreais da representação. As fronteiras físicas e psíquicas esbatem-se e subvertem-se a cada instante, e tudo parece possível, perante a inquietude profunda e perturbante. O elenco tanto age como uma massa quase orgânica, como, em seguida recupera cada individualidade.

Impressiona a referência constante aos elementos naturais, que o público sente literalmente na pele, gerando uma experiência sensorial quase sinestésica. A Água, real e simbólica, é chapinhada em todas as direcções, entre pulos, duches de chuveiro e danças tribais da chuva. O odor intenso a Terra, constantemente revolta, atirada e espalhada, é uma das marcas mais fortes que se trazem daquelas quase duas horas de transe colectivo. O Ar parece mais denso, emuladas as suas deslocações com os movimentos do elenco, ventos fortes e descargas eléctricas, do céu aos corpos convulsos. O Fogo reside nos ânimos e surge encarnado pelo personagem masculino nú, completamente pintado de vermelho, que assombra o elenco. Os quatros elementos surgem subjugados pelo elemento superior, a Deusa Mãe dos profanos que a ela devotavam preces e sacrifícios e que deles dispõe livremente, hoje evocada por toda a parte, por tantos nomes quantas as variações metereológicas.

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Chamar a uma performance desta estirpe uma reflexão, no que de meramente intelectual esse conceito encerra, será redutor. Erguidos para os aplausos, de volta ao gélido buliço natalício, é à nossa verdade que regressamos, agitados porque tão claramente reflectidos, talvez com uma renovada consciência da nossa transitoriedade entre um estado e o seguinte, da longa valsa com a Vida e o Tempo em que estamos encerrados, até ao dia derradeiro em que, inevitavelmente, mudaremos de par.

Climas será apresentado em 2017:20 e 21 de Janeiro na Culturgest, Lisboa e a
3 de Fevereiro no Teatro Aveirense, Aveiro.

 

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