home Antologia, LITERATURA Com o Mar por Meio – Jorge Amado, José Saramago (Companhia das Letras, 2017)

Com o Mar por Meio – Jorge Amado, José Saramago (Companhia das Letras, 2017)

Ler Com o mar por meio – Uma amizade em cartas (Companhia das Letras, 2017), destaca mais o que de si é já evidente: hoje em dia as pessoas não se escrevem. Comunicam muito por escrito (com a evolução tecnológica, o grosso da comunicação passou a assumir essa forma), contudo é cada vez mais raro escreverem-se com cuidado, primor e gosto pela língua. É esse um dos encantos deste livro: o regresso a um passado recente em que as pessoas levavam o seu tempo a escrever-se, mediam e brincavam com as palavras, para que os destinatários as pudessem saborear, de forma lenta e prazeirosa.
Como o título deixa antever, o livro reúne uma selecção da correspondência trocada durante seis anos (de 1992 a 1998), entre Jorge Amado e José Saramago, dois expoentes máximos da literatura em língua portuguesa. A primeira carta trocada entre ambos, assinada unicamente “José”, data de Dezembro de 1992, e a última, assinada por “Jorge”, “Zélia” (Zélia Gattai, a mulher do escritor) e “Paloma” (Paloma Jorge Amado, filha), data de 8 de Outubro de 1998. Os escritores conheceram-se pessoalmente em Roma, em 1990, contava Jorge Amado já 78 anos e José Saramago, 68, quando ambos foram jurados do Prémio União Latina. A amizade intensificou-se no ano seguinte, quando voltaram a fazer parte do mesmo júri, alimentada pelo objectivo comum de que aquele prémio fosse entregue a um escritor de língua portuguesa (o que lograram com a entrega do prémio nesse ano a José Cardoso Pires), e foi sendo posteriormente alimentada pela troca frequente de correspondência.
Vendo naquelas cartas pura literatura, Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel, chamaram a si a difícil tarefa de as seleccionar e organizar. O livro que assim nasceu foi apresentado ao grande público na FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty) de 2017, após a criação da casa Amado-Saramago, com uma edição cuidada, um projecto gráfico diferente e muito bonito. Nele encontramos os fac-simíles das cartas, bilhetes, cartões e faxes, além de várias fotos do acervo pessoal dos escritores. Tanto o texto como a cor das imagens que no seu conjunto compõem o livro, é azul, evocando o mar presente no título e mantendo-se fiel à cor da tinta das canetas usadas pelos escritores nas suas cartas.

Facto curioso (ou nem tanto, se recuarmos à década em questão), é de ter sido usado como meio preferencial para a maioria da correspondência o fax, hoje quase relíquia de museu, mas à época uma forma moderna de comunicação. Num desses faxes trocados entre Lisboa/Lanzarote (as moradas de Saramago), e Salvador/Paris (as cidades da família Amado), o escritor baiano conta, com o humor que lhe era característico, como o seu aparelho de fax se assemelhou a um vulcão em chamas, após uma surpreendente avaria: «Bahia, 2 de Fevereiro de 1994. Queridos amigos, Saudades, muitas! O nosso fax da Bahia incendiou (isto mesmo: pegou fogo e botou fumação) no domingo, somente hoje reassume o posto (como conseguimos viver tanto tempo sem fax?). Foi um belo espetáculo: o fax parecia um vulcão, fez-nos falta. Vale dizer que, além do fax, os peritos electricistas de uma tevê conseguiram colocar fora de uso os três aparelhos de tevê, a secretária electrônica, um computador e os jogos (vários) electrônicos do neto Jorginho, uma catástrofe. Aí vai a página de O Globo de domingo. Obrigada, José, pela referência generosa. Desejo saber se José comparecerá, como me informaram, a um encontro de escritores ibero-americanos, a 3 e 4 de maio, em Lisboa. Obrigada pela informação. Para o casal lindo, beijos e abraços da Zélia (dela é a expressão “casal lindo”, assim se refere a Pilar e José), Paloma, Rizia, João Jorge e do velho Jorge» (pág. 34). E a resposta de Saramago é deliciosa: «Lanzarote, 3 de Fevereiro de 1994. Queridos amigos, Quando lemos que o fax ardeu, pensámos que tivesse sido obra de alguma ardente comunicação de Madonna para Jorge… Logo vimos que não, que o desastre atingiu tudo e todos. Que fará agora o neto sem os seus jogos? […]» (pág. 35)
Com um oceano entre ambos, Jorge Amado e Saramago alimentaram a sua amizade tardia, como homens de letras que eram, através da palavra e da partilha. Os temas abordados nas suas missivas eram variados e tanto versavam sobre o seu lado mais íntimo e pessoal (a preocupação com a saúde de Jorge Amado é uma constante), como sobre a conjuntura contemporânea e, em especial, a cena literária. Com humor e ironia, os amigos discutiam prémios e associações literárias, especulando sobre a quem seria, por exemplo, atribuído, o Prémio Camões ou o Nobel, ou tecendo considerações sobre as escolhas dos laureados: «Tias, 2 de Julho de 1993, Queridos Zélia e Jorge, Acabamos de receber aqui a notícia de que o Camões foi para Rachel de Queirós. Não discutimos os méritos da premiada, o que não entendemos é como e porquê o júri ignora ostensivamente (quase apeteceria dizer: provocadoramente) a obra de Jorge Amado. Este prémio nasceu mal e vai vivendo pior. E os ódios são velhos e não cansam. Caríssimo Jorge, no mais completo sentido destas palavras, estamos contigo. E também com Zélia, que, como tu, está sofrendo o amargor da ingratidão. Grande e fraternal abraço, José» (pág.24); «Lanzarote, 25 de Setembro de 1994. Queridos Zélia e Jorge […] Quanto ao Nobel, como dizia o outro, seja o que Deus quiser. Talvez o Colchie (foi ele o da notícia, não foi?) tenha razão: já há anos que o Lobo Antunes andava por aí a dizer (em entrevistas, em colóquios, em toda a parte) que o seu objectivo era o Nobel. Continuaremos, os outros, a viver tranquilamente. Mas não há dúvida de que esse prémio é uma invenção diabólica…Vai dando notícias dos teus olhos. Para ambos, todos os carinhos de Pilar. O abraço muito afectuoso do José Saramago/ P.S.: Por graça, junto uma notícia do ABC de Madrid…» (pág. 53)

Entre os amigos havia uma convicção – de que seria o outro o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um Nobel – e um pacto: quando tal acontecesse dos dois casais iriam celebrar juntos na capital sueca. Da leitura da correspondência trocada entre Amado e Saramago é evidente a ternura, respeito e admiração que os escritores nutriam um pelo outro,  traduzidos nos “queridos” iniciais e nos “abraços afectuosos” das despedidas.

Ambos foram cremados e as suas cinzas enumadas junto a árvores (Jorge Amado junto a uma mangueira, a cuja sombra gostava de estar em Rio Vermelho, e as de José Saramago debaixo de uma oliveira, trazida da sua Azinhaga natal, para Lisboa, plantada junto à Fundação com o seu nome). Mas para nós, os seus leitores, os escritores nunca morrem e este livro, que os revela na sua intimidade partilhada, está aqui para provar isso mesmo.

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