home Didascálias, TEATRO Elizabeth Costello – TNSJ, 26/01/2018

Elizabeth Costello – TNSJ, 26/01/2018

Baseada no romance homónimo de J. M. Coetzee, a adaptação para palco de Elizabeth Costello pela mão de Cristina Carvalhal é uma discreta mas poderosa experiência de reflexão metafísica. Em pouco mais de uma hora e meia de economia narrativa e cénica, fica demonstrado que, em teatro, o lugar-comum less is more confere e se recomenda.

Uma girafa, um canguru e um abutre gigantes, todos em origami, trazem Coetzee para palco, no triângulo África – Austrália – morte, que a personagem Costello – alter-ego do autor, umas vezes de forma óbvia, outras menos – a si faz convergir. A escritora australiana em idade avançada, que faz incursões por outras obras do autor, encontra-se numa posição reminiscente da do Joseph K. kafkiano. Face à proximidade da morte, é preciso uma chave para obter a passagem, mas que parece impossível de descobrir. No caso, o preenchimento de uma confissão é a origem deste Processo: para passar a porta, escreva em que é que acredita. Elizabeth é escritora, reconhece o cliché, mas pronuncia-o: como todos sabem, eu sou artista, eu sou eu e uma outra. Em que é que eu acredito? Se preferirmos o cliché lusitano, o escritor é um fingidor, como nos sinaliza do lado direito um espelho gigante que distorce a figura de Costello quando ela o enfrenta. A demonstração da dificuldade de um escritor em responder de forma simples ao que lhe é pedido no limiar da morte, prende-se primeiramente com a inexorabilidade do questionamento sobre o que é a vida. Abre-se a discussão sobre a ontologia do ser humano: os gregos, Cristo, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, todos são convocados a esclarecer os céticos – amalgamados na personagem da nora – sobre a necessidade da metafísica, mas também do seu potencial paralisador. A premissa é o vegetarianismo ortodoxo de Elizabeth, cujo argumentário nada tem de superficial ou new age: se a revolução industrial deificada culminou com a industrialização da morte em Auschwitz ou Treblinka, e se o mesmo processo é aplicado à produção de morte em massa de animais, esquartejados e colocados em caixas nos nossos congeladores, só é por considerarmos que o ser humano – por ser dotado de razão – tem primazia sobre os restantes habitantes da terra, que este extermínio nos parece natural. Não é hiperbólica a analogia com o nazismo, conhecendo as suas premissas teóricas da diferenciação racial, que conseguiram persuadir milhões de pessoas de que, mesmo entre os humanos, há diferenças que justificam a sua eliminação e utilização para outros fins: gordura humana de judeus para produção de borracha equivaleria, portanto, do ponto de vista metafísico, à carne de vaca produzida para alimentação humana supérflua. No fundo, enganamo-nos quando fazemos um teste a um chimpanzé para perceber a sua inteligência, como nos mostra o ator Luís Gaspar na cena em que um primata com voz humana denuncia os verdadeiros propósitos da espécie humana: queremos justificar a nossa superioridade, não uma inferioridade do ser irracional, pois tais categorias são sempre relativas. As respostas certas são aquelas que nos convêm, o errado é determinado por nós, humanos, que destas noções dispomos sem questionamento. E para tal temos a colaboração do cristianismo, glorificador da pobreza e do sofrimento, ou do entretenimento e da publicidade, anestesiantes do posicionamento crítico.

A estrutura dramática adota a lógica das palestras apresentadas por Elizabeth Costello sobre todos estes temas, cruzando-se com a reflexão autobiográfica da personagem, onde acontece o maior número de aproximações ao próprio Coetzee, por exemplo na conversa na praia com o amigo escritor branco africano, que perora sobre como porventura opera uma exoticização do continente africano na sua escrita.

Quando o processo chega ao fim, somos confrontados com a universalidade da experiência de Elizabeth – escritora e ser humano –, em julgamento sem resolução à vista. Devemos um louvor aos (apenas) cinco atores em palco, em especial à assertiva Cucha Carvalheiro enquanto Elizabeth, exímios nas metamorfoses que dominaram com a mestria de Cristina Carvalhal, cujo talento enquanto atriz dispensa apresentações, mas que aqui convence enquanto encenadora na inteligência da adaptação e da utilização do palco do teatro para aquilo que ele serve, desde os gregos (os gregos certos, como em algum momento Costello refere): espelhar a condição trágica do humano. Neste caso, os limiares, as passagens, as pontes que é suposto cruzarmos, sem um guião satisfatório – uma crença – que nos indique como.

Foto © João Tuna

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

Mais crítica de Teatro AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *