home Antologia, LITERATURA Eu Sou Dinamite! – Sue Prideaux (Temas e Debates, 2019)

Eu Sou Dinamite! – Sue Prideaux (Temas e Debates, 2019)

Eis aqui um título cuja estridência não incorre em publicidade enganosa. Não, como é óbvio, que Friedrich Nietzsche lançasse pelos ares os seus circunstantes; mas o pensamento deste filósofo teve repercussões que não perderam pela demora – e que extravasaram o campo da filosofia para o dos saberes gerais e mesmo para o quotidiano medianamente culto. Daí que seja perfeitamente justo que a autora britânica fosse buscar este Eu Sou Dinamite!, entre os muitos aforismos de Nietzsche – que surgiam, por vezes, no meio de cartas, considerações várias, ou mesmo no seio de livros nem sempre construídos de acordo com o modelo aforístico. Aquele que Sue Prideaux escolheu dá bem a dimensão de uma filosofia que teve as consequências mais momentosas. Mas também as mais trágicas. Como as que consistiram na deturpação que o nazismo fez das ideias de Nietzsche. Trata-se de um assunto a que a biógrafa de maneira nenhuma foge – e que, pelo contrário, trata de forma exemplarmente clara e prática. Aliás, como lembra a biógrafa, Nietzsche disse e escreveu frases tão esclarecedoras, em relação a esse tema, como as seguintes: «Não tenho esse entusiasmo por “coisas alemãs”, e ainda menos por manter pura esta raça “gloriosa”. Pelo contrário, pelo contrário» (p.293); «“Deutschland, Deutschland über Alles”, temo que isso tenha sido o fim da filosofia alemã.» (p.456); «A minha irmã é uma palerma vingativa e antissemita!» (p.335) Chegou mesmo a apelidar a sua editora de «túmulo antissemita» (p.307). Nietzsche gabava-se, de resto, de ser tomado por cidadão polaco, sempre que viajava no estrangeiro. Estava mesmo convencido (erroneamente, na verdade) de que descendia de nobres originários da Polónia. Motivos mais do que suficientes para acreditarmos que o tão propalado Nietzsche germanista absoluto, anti-semita e racista, resulta, inequivocamente, de um abastardamento de noções e postulados que, na sua expressão concreta, nada tinham que ver com racismo, xenofobia, nem sequer com a infâmia nacional socialista.

Tratando-se de uma biografia de Nietzsche, Eu Sou Dinamite teria, necessariamente, de incorporar qualquer tipo de tratamento da vida de Richard Wagner, algo que a autora faz de uma forma que harmoniza os percursos do músico e do filósofo – ambos, por sinal, amplamente desarmónicos. Não se deverá aqui falar de duas biografias paralelas, mas de uma biografia nuclear e una à qual está acoplada, sensata e elegantemente, uma outra – a de Wagner –, cujo protagonista eleva o chavão «maior do que a vida» a patamares insuspeitos. Tudo isso a biógrafa alcança com incrível destreza e um poder de organização que só podem merecer os maiores elogios. Numa das primeiras visitas ao casal Cosima e Richard Wagner, «Nietzsche, pouco ligado às coisas terrenas, parece não se ter apercebido de todo» (p.81) de que Cosima estava grávida de oito meses. Prideaux mostra-se exímia a esclarecer o complexo emaranhado que enredaria Nietzsche e o casal Wagner. Seria, realmente, preciso a precisão de um relojoeiro, ou o sangue-frio de um atirador furtivo, para não fazer deste quadro uma baboseira telenovelesca. Ora, sucede que Sue Prideaux tem, exactamente, esses dons necessários. Detendo-se, por exmplo, sobre a personalidade de Cosima, em particular, diz-nos que esta era «uma pianista exímia e uma crítica rigorosa. Wagner temia a sua censura como se fosse uma criança e sofria horrores quando Cosima se recusava a ter relações sexuais.» (p.100) O compositor, por seu turno, como ensina a biógrafa, havia de proferir a seguinte frase lapidar, dirigindo-se a Cosima: «Seria mais fácil morrer por mim do que viver para mim» (p.108).

O percurso de Nietzsche revelou uma singular metamorfose. Nascido no seio de uma família profundamente religiosa – o pai era sacerdote –, estava destinado a uma carreira eclesiástica. Revelou, na verdade, inclinação nesse sentido e, ao que parece, verdadeiro interesse pela teologia. No entanto, acabou por preterir essa área de estudo em função da Filologia, na qual se fixou. E, embora viesse a dizer que os filólogos eram «microbiólogos tacanhos e de sangue de rã» (p.43), fez da pesquisa filológica e do seu ensino a sua actividade, tendo mesmo chegado a afirmar: «Preferia ser professor em Basileia a ser Deus» (p.68). Mas também esse interesse maior da sua vida viria a ser substituído: desta feita, pela filosofia – seu derradeiro fulcro de acção e razão de viver por excelência. Na certeira expressão de Sue Prideaux, «Entre as diversas interpretações existentes de A Origem da Tragédia, o livro talvez possa ser lido como o bilhete de suicídio de um filólogo.» (p.139). A partir de então, Nietzsche seria, portanto, o «vidente cego de amplos horizontes proféticos» (p.224) e a filosofia e uma existência de errância permanente, em busca de paz de espírito e corpo, marcariam todo o percurso que lhe restava, até que a doença o prendeu a um fim de vida vegetativo.

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A concluir um livro que consegue obter uma síntese muito feliz entre a vida e obra de Nietzsche, encontra-se uma excelente antologia de trechos, muitos deles autênticos aforismos – «os aforismos são uma forma de eternidade» (p.452) –, retirados das várias obras do filósofo, bem como dos seus cadernos. A escolha, criteriosa e organizada de forma temática, indica (seguindo uma excelente prática) os livros de que se retiraram as citações. Esta rubrica final é especialmente proveitosa porque oferece uma panorâmica que abrange a quase totalidade da produção de Nietzsche. Uma disposição que permite uma assinalável variedade de modos e abordagens. Alguns destes ditos, ou fragmentos escolhidos, revelam com pungência determinadas áreas que eram, ou viriam a ser especialmente delicadas para Nietzsche, como aqueles que parecem antecipar a demência que dominaria o seu longo crepúsculo – «A vantagem de termos má memória é que podemos gozar as mesmas coisas boas pela primeira vez, diversas vezes.» (p.462) Outras passagens revelam-nos o seu interesse pela teoria do conhecimento – «Não há factos, apenas interpretações.» (p.460) –, mas também a sua iconoclastia – «Estado é o nome do mais frio de todos os monstros frios.» (p.457). Certos destes passos escolhidos da sua obra são muito úteis para ajudar a dissipar a névoa interpretativa que teima em colar-se à figura do filósofo. Por exemplo, se atendermos a estas duas afirmações – «Pegar numa colheita seleccionada, como esta, de juventude e energia e força e depois colocá-la diante de canhões – isso é loucura.» (p.439); «Se pudéssemos dissuadir em relação às guerras, quão melhor seria» (p.439) –, logo perceberemos que o belicismo não era uma dos traços característicos do filósofo e que, pelo contrário, a sua postura era a de um pacifista.

Tal como fez na sua admirável biografia de Strindberg, Sue Prideaux é exaustiva sem ser redundante, minuciosa mas não enfadonha; revela capacidade para fazer desvios estratégicos, mas tem um sentido de orientação digno de louvor.

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