home INTRO(specção), LP, MÚSICA Mark Hollis (04.01.1955 – 25.02.2019)

Mark Hollis (04.01.1955 – 25.02.2019)

E fechou os olhos, porque estava cansado da sua sabedoria da visão. Gostaria de poder morrer, disse ele, a terra é extraordinariamente rica e constante, estou cansado. A terra está cheia de coisas vivas e inúteis, coisas irrompentes, palpitantes, ardentes – coisas de uma fulgurante inutilidade. Fechou os olhos e disse: se eu pudesse morrer. Esta é a minha sabedoria, tenho os olhos queimados.

Herberto Helder, Photomaton & Vox, 1987

Mark Hollis (Tottenham, Londres, 4 de janeiro de 1955 – Londres, 25 de fevereiro de 2019) morreu após 20 anos de absoluto silêncio. Soubemo-lo por nota de um tweet do cunhado. Até aos 64 anos fez tudo ao contrário. Tenho quase a certeza que terá sido por uma só palavra: revelação.

Hollis nunca terá lido Herberto Helder, mas a sua adolescência foi também de ira e dor, como qualquer adolescência sempre o será. O que fez, na busca sem concessões por essa revelação, junta-o àquele que também só com ela percebeu que podia abandonar “o casulo arcaico da angústia que a si mesmo se disfarça”. Investigou a sua saída num acesso dado pela escrita musical exercida como caligrafia (também) livre. Hollis e Herberto tinham aquela escrita extrema de um mundo apocalipticamente cortado pelo sangue e pelo silêncio. Ao piano e à harpa de Herberto, Hollis apenas acrescentou o que sabia das guitarras elétricas.

O vocalista dos Talk Talk começou com hits new romantics, coisas épicas e excessivas, mas cedo com eles se foi escondendo do sol com as nuvens de que sempre gostou mais. The Colour of Spring (1986), Spirit of Eden (1988), Laughing Stock (1991) e, já a solo, o homónimo Mark Hollis (1998) são questões essenciais para a melhor música que hoje ouvimos — e se a maioria não o sabe, bem pode perguntar aos Radiohead, aos Sigur Rós. O jazz, a palavra, o silêncio, (o silêncio!), a ambient music, as guitarras elétricas e as paisagens imaginadas por Hollis ajudaram a formar o pós-rock, um “fluxo-de-consciência” onde celebramos em quase segredo um dos grandes criadores musicais do nosso tempo.

Fomos conduzidos por Hollis até um lugar onde a música recusa ser mercadoria ou explicação. Um lugar onde a música ambiciona deslocar a atenção para um súbito flash, para uma súbita irrupção da luz, para um assalto. O «ofício cantante» foi transformado, também em Hollis, num ofício sagrado, num desejo de poema contínuo, um também querer «caminhar em cima das águas».

Spirit of Eden é o meu favorito sem perceber muito bem porquê. O timbre, a frequência e a duração de cada nota contam uma grande de história da música: uma guerra da arte versus comércio. O “vazio” dos seus dois primeiros minutos permite que nos ajustemos à luz fraca de um álbum gravado na escuridão quase completa, lançando sementes para o futuro.

Conta a lenda que, quando o A&R da EMI ouviu Spirit of Eden, em 1988, foi levado às lágrimas. Percebeu a sua beleza e que nunca iria vender. Uma banda de sucesso planetário havia transformado o seu som de dentro para fora e emitido um sussurro, baixando quase a zero o batimento cardíaco do synth-pop que os fazia vender mais de 4 milhões de discos por trabalho.

Naquela altura, Mark Hollis (co-escritor com o produtor Tim Friese-Greene) apontava já, como pontos de contacto para sua inspiração, para a obra-prima do jazz orquestral Sketches of Spain, de Miles Davis e Gil Evans, para as experimentações zen de John Cage, para o piano de Eric Satie e para o filme de vanguarda de Vittorio De Sica, O ladrão de Bicicletas/The Bicycle Thieves. Transformou, por isso, os Wessex Studios num casulo de escuridão. Algumas velas na mesa da sala de controle, uma luz estroboscópica acionada por som junto à bateria de Lee Harris, um projetor de rodas dos anos 1960 a lançar glóbulos coloridos no teto e nenhuma noção do tempo. Tudo possibilitado pela “carta branca” dada pela EMI. E tudo experimentado: violinistas a improvisar por três horas para sair uma ou duas notas utilizáveis, um coro de 25 pessoas para cantar “I Believe in You” — música tocada com guitarras elétricas que Hollis escreveu a pensar no seu irmão mais velho, o “ex-punk”, Ed Hollis, e a sua luta contra o vício da droga— e até o coro da Catedral de Chelmsford, seis pequenos sopranos que no disco viriam a substituir o coro.

Da banda sempre animada pela luminosidade do new wave que, em 1982, deu ao mundo o multimilionário álbum The Party’s Over, Mark Hollis quis transcender as fronteiras da canção pop. É por isso que me lembro sempre do deífico Spirit of Eden, também uma espécie de álbum-ilusão: não se conhece a proveniência de cada som. É um álbum dificilmente cantável e certamente não dançável que mereceu uma receção crítica morna e dos habituais 4 milhões de cópias passou para as 500 mil cópias e para um rápido divórcio com a editora (EMI).

Se Mark Hollis quisesse, ter-se-ia apresentado como uma vítima da inocência, da neurose da exposição ao mundo. Mas ele estava maduro para isso tudo. Desejou ser, ele mesmo, o mais obscuro dos enigmas e aplicar as mãos na matéria primária, oferecendo-a em dádiva e em silêncio. Não foi vítima de nada, muito menos da ilusão do conhecimento. E foi, para mim, uma excelente companhia.

Por defeito profissional, o Paulo Alves escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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