home Antologia, LITERATURA No Sentido da Noite – Jean Genet (Sistema Solar, 2016)

No Sentido da Noite – Jean Genet (Sistema Solar, 2016)

São raros os livros (e que dizer das editoras…?) que buscam realmente iluminar/educar o leitor, não no sentido mais condescendente ou professoral do termo, mas antes na tentativa de acrescentar conhecimento e uma visão abrangente do texto divulgado. Este No Sentido da Noite (edição de 2016 da Sistema Solar), colectânea de textos fulcrais do dramaturgo, poeta e escritor Jean Genet, alcança esse desiderato numas meras 156 páginas. Com a excelente coordenação e tradução de Aníbal Fernandes, somos apresentados a algumas ideias, temas e obsessões transversais à obra do francês, sem a formalidade académica que amiúde acompanha estes autores,  sacralizados pelo decurso do tempo e pela crítica especializada.

O livro abre com um elucidativo texto introdutório – «Primeira Crise» – apresentação do todo contido na publicação, e termina com um Apêndice, destacando os pontos altos de cada texto e enquadrando-o com a sua recepção crítica e as incidências biográficas do autor contemporâneas à sua criação. Como bónus, ilustrando os dois textos finais do livro, derivas de Genet sobre um dos seus modelos artísticos – Rembrandt, sobre quem planeava escrever um livro nunca concretizado – encontramos algumas reproduções de telas citadas.

Nada em Genet era gratuito ou desprovido de um sentido paralelo ao significado primevo das palavras. O choque que sempre procurava na sua ética e estética, resumia-se a um movimento centrípeto, cujo âmago era a anulação da ordem vigente e a revolução da linguagem dramática, reduzindo-a a símbolos capazes de convocar o espectador/leitor de modo holístico, provocando-o, expondo-o ao horror e à repulsa, unindo finalmente elenco, dramaturgo e público contra o texto e, com isso, contra o evento teatral como mero acto de exibicionismo burguês, com uma navalhada na realidade.

A luta do francês começou em tenra idade, vítima de um sistema descrito e criticado em «A Criança Criminosa», que por pouco não o destruiu, como fez a milhares de outras vidas, colocadas numa posição irreversível e por vezes fatal. Presas e tratadas em condições animalescas por bagatelas penais, eram forçadas a entrar na idade adulta com as piores referências: a crueldade pura e, neste caso, enraízada, institucionalizada e apoiada por um Estado francês conivente e silencioso. As descrições são pungentes, como a do campo de Mettrey:  “Depois de chegar (…) passava a chamar-se colono (…). Fechavam-no numa cela completamente pintada (texto incluído) de negro. Depois vestiam-no com um traje célebre na região pelo que evocava de terror e ignomínia.” A rotina de luta pela sobrevivência impunha-se: “as zaragatas às vezes mortais que os carcereiros não perturbavam, (…) os silêncios durante o trabalho e as refeições, (…) os castigos de reclusão, os tamancos, os pés esfolados, a ronda ao sol e a passo de marcha, a gamela de água fria, etc.” (pg. 23). Nestas crianças, reconhece o heroísmo de se rebelarem contra uma sociedade poderosa e opressiva, rogando-lhes (ou a talvez a si) que “dentro de si conservem intacta a revolta que tanta beleza lhes deu.” (pg. 28) A ideia essencial desta sua apaixonada epístola,  acaba por ser o dedo em riste apontado à hipocrisia social, que escolhe ignorar a realidade do crime e das suas penosas consequências, apenas para glorificar a sua imitação pela Arte. “Nada pode substituir a sedução dos fora-da-lei” (pg. 33). Às crianças restava o rótulo de “inadaptadas” e a inútil “cura” pelos psiquiatras.

Quanto às coordenadas da sua mundividência artística, dois textos destacam-se, por coincidência (ou talvez não) ligados à sua célebre peça “As Criadas”: «Carta a Jean Jacques Pauvert» e «Como interpretar Les Bonnes», verdadeiros manifestos onde, de forma poética, explora o seu projecto para o evento dramático ideal. Aparte os detalhes mais folhetins Costa (remetidos para o apêndice a estes textos e de somenos importância), Genet revela um plano à partida irrealizável (a não ser abstracta ou subjectivamente) para “uma arte que fosse um emaranhado profundo de símbolos activos, capazes de falar ao público uma linguagem onde nada seria dito, mas tudo pressentido.” (pg. 39), algo possível pelo uso da “fórmula teatral (…) alusiva” (pg. 41), e em detrimento do conceito ocidental do actor, que “quer simplesmente identificar-se com uma personagem” (pg. 40). O dramaturgo pugna pela radical “abolição das personagens” (pg. 40) e sua substituição pela “metáfora do que devia representar” (pg. 41). Embora transpareça a ideia de cerimónia, no sentido de comunhão, Genet afasta-se de conotações religiosas, numa das frases mais marcantes de todo o livro: “Uma das funções da arte é, sem dúvida, substituir a fé religiosa pela eficácia da beleza. Esta beleza deve ter, pelo menos, a força de um poema, quer dizer, de um crime.” (pg. 42)

Em «Como interpretar Les Bonnes», camuflado, num conjunto de didascálias e instruções, um panfleto sobre a arte dramática. Partindo da grande especificidade da peça (já focamos diversas críticas sobre ela na Intro, por exemplo AQUI e AQUI), estende-se de forma arrebatada e provocadora acerca do Teatro, da representação e dos seus intervenientes. A peça em si é uma meta-representação, uma peça dentro da peça, em que as criadas, na ausência da Senhora, recriam a dialéctica de submissão, violência e desejo que mantêm com a patroa e entre si, nunca sendo expressas sobre quais as cenas referentes a “verdadeiras” interacções ou à “representação”, o jogo que repetidas vezes criam. Sobre o Teatro diz: “Sem poder dizer ao certo o que é o Teatro, sei o que recusa ser: a descrição de gestos quotidianos vistos do exterior; vou ao teatro para me ver no palco (…) sob uma forma que eu não saberia – ou não ousaria – ver-me ou sonhar-me, e no entanto como eu sei exactamente como sou. Os comediantes têm pois como função revestir-se de gestos e adornos que lhes permitam mostrar-me a mim próprio, e mostrar-me nú na solidão e no seu júbilo.” (pg. 47)

Dos restantes textos, mais fragmentários (fruto da sua lendária tendência para destruir manuscritos após a pesquisa, para começar do zero), destaca-se «A Estranha Palavra Que…», em que o evento teatral é decomposto em partes (Tempo, Lugar, Linguagem, Performance) para uma perspectiva mais global, embora polémica e quase fúnebre do Teatro enquanto arte a ser desafiada em permanência. Os textos sobre Rembrandt esclarecem o origem o fascínio de Genet pelo holandês: a sua tendência para retratar as pessoas com todas as suas deformações, a preferência por “rostos trabalhados pela idade” (pg. 102) e a fuga ao estereótipo de encapsular traços de carácter nos modelos dos seus retratos, evitando juízos prévios e caricaturas, mas insuflando-os com humanidade e humor; ou seja, traços perfeitamente localizáveis em toda a obra de Genet. Pela simbologia e alusão, Rembrandt procura destacar o idêntico no humano, recusando o óbvio, para que ao espectador fique reservado o juízo final. Ambos buscavam a eternidade por vias distintas, superando o circunstancial em busca do perene e unificador.

Genet apostou sempre nos desvalidos (como ele próprio havia sido antes de ser canonizado por Sartre), por neles se identificar e, na revolta e rebeldia que lhe é intrínseca, conseguir veicular a sua motivação primeira para a Arte: a subversão militante. “O gesto que destrói a lei tem um poder de escrita” (pg. 59). Era libertação que Genet perseguia sem tréguas, mas também superação e redenção. Se o obteve, levou com ele esse consolo, legando-nos a dúvida violenta e confrontadora que só as margens têm o poder de semear.

 

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