home Antologia, LITERATURA O Ano Sabático – João Tordo (Companhia das Letras, 2018)

O Ano Sabático – João Tordo (Companhia das Letras, 2018)

“Percebeu que sempre lhe faltaria alguma coisa; que era incompleto, insuficiente para si mesmo, e que, na verdade, tinha pavor de procurar essa coisa, uma vez que a procura corresponderia ao pior de todos os horrores.”

Não ser único, original, singular. Descobrir, afinal, que o que trazemos como garantia da capacidade de sermos humanos é um logro e, algures, há outro de nós, igualmente incompleto. A angústia gerada pela ideia de podermos ser um mero negativo, uma sombra, um clone de outrem e que vivemos apenas numa ilusão de originalidade, de uma identidade que nunca foi nossa. É este o caminho por onde João Tordo nos leva em O Ano Sabático, publicado originalmente em 2013 e reeditado pela Companhia das Letras em 2018. O autor nasceu em Lisboa, cursou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e venceu, em 2009, o Prémio Literário José Saramago com o romance As Três Vidas.
Com onze romances no currículo, vários dos quais premiados ou finalistas de prémios literários, a sua escrita pauta-se por abordar complexas questões existenciais, desmistificadas, mas envoltas numa angústia subtil, com um estilo límpido que cresce a cada página, à medida que o suspense se adensa.
Para o leitor, a história desenrola-se como que num ténue e persistente suster de respiração, que só se manifesta no limite, quando o corpo não aguenta mais e os pulmões precisam de ar, tal o afogo.
O Ano Sabático tem-nos num alerta presente, mas quase impercetível. Gera-nos aquela ansiedade dos livros bons, que se querem devorar, cujo enredo nos persegue muito depois de concluída a leitura.
Conta a história de Hugo, um contrabaixista deprimido e fracassado, vencido pelos excessos e vícios a que sucumbiu, marcado por uma permanente insatisfação e incompletude. Regressa a Lisboa após ter vivido em Montreal por mais de uma década, trazendo como únicos pertences o seu contrabaixo e uma melodia em dó sustenido que não lhe sai da cabeça. Justifica perante a família a “fuga” de Montreal como uma pausa necessária para se reencontrar, para compor e se tornar um verdadeiro músico: um ano sabático!
Pouco depois da chegada, por mão da irmã gémea, Hugo assiste ao concerto dum pianista em ascensão, Luís Stockman, que transforma por completo a sua (até então) inconsequente existência. No meio do concerto, o pianista toca a música que assombra e persegue Hugo há anos, que nunca concluiu nem partilhou com ninguém. Como se tal não bastasse, Hugo e Stockman partilham uma incrível semelhança física, que vai além das feições ou maneirismos, ao ponto de serem confundidos.

A possibilidade de serem gémeos afigura-se-lhe como a explicação para o furto (ou criação simultânea) da única coisa de que podia orgulhar-se na sua vida. A ser assim, porém, Hugo terá de enfrentar a derradeira questão: quem sou eu?, questão que assombrará Luis Stockman pelos mesmos motivos.

“Era-lhe indiferente como as coisas tinham acontecido. Como todos nós, desconhecia a sua infância mais remota; era incapaz de regressar ao estado zero, saber onde nascera ou como nascera ou de quem nascera. Como todos nós, a barriga das nossas mães é um lugar de mitologia. Presumimos que tenhamos lá estado, que a nossa gestação mais fundamental teve lugar num útero, alimentados por outro organismo, envolvidos pelo fluido amniótico, por vezes sozinhos, noutras acompanhados. Pelo menos é o que nos dizem. É igual a nada. Por mais vezes que assistamos a um parto, somos incapazes de compreender o que significa ter nascido, da mesma maneira que somos incapazes de saber o que significa morrer. Vista desta maneira, a vida não passa de um intervalo; os acontecimentos fundamentais que a constituem não podem ser vividos nem lembrados.”

O Ano Sabático desdobra-se em duas partes, duas perspectivas que se sobrepõem: a história de Hugo, contada por um narrador na terceira pessoa, e a história de Luis Stockman, pelo seu melhor amigo, na primeira pessoa.
A escrita é fluída e precisa, deixando-nos a sensação de que todas as palavras foram escolhidas com uma finalidade muito definida. Uma leitura vertiginosa.

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