home Antologia, LITERATURA Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe – Edgar Allan Poe (Edições Saída de Emergência)

Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe – Edgar Allan Poe (Edições Saída de Emergência)

Com todos os riscos que haja em escolher um título como Os Melhores Contos de…, seria difícil encontrar um conto que fosse absolutamente crucial e que aqui não esteja representado. Nem mesmo a ausência de «Ligeia» deverá fazer esquecer que, neste espesso volume – que colige 28 contos de Poe, acompanhados de trabalhos de outros tantos ilustradores portugueses –, se encontram «Berenice», «A Queda da Casa de Usher», «William Wilson», «Eleonora», «O Retrato Oval», «O Coração Delator», ou «A Pipa de Amontillado». Tal companhia permite à edição (a cargo de Safaa Dib) reunir no mesmo livro contos ligados entre si por temas, conteúdos e personagens, como é o caso de «Os Crimes da Rue Morgue», «O Mistério de Marie Rogêt» e «A Carta Furtada» – os quais apresentam uma das mais memoráveis criações de Poe: o sui generis investigador C. Auguste Dupin, que faz a sua primeira aparição em «Os Crimes da Rua Morgue». Este antepassado de Sherlock Holmes – a quem nem falta o companheiro muito menos sagaz e anotador devoto das proezas do admirado amigo – não é um profissional do ofício, mas um praticante de génio movido pelas mais inesperadas idiossincrasias. Um excêntrico e um grande raciocinador, com um notável poder de agudeza e análise.

Edgar Allan Poe foi um explorador exímio de estados extremos. Quer estes se manifestassem através de uma sensualidade obsessiva e malsã – «Tínhamos tirado o deus Eros daquela onda, e sentíamos então que ele reacendera em nós as almas ardentes dos nossos antepassados. (…) Tinha visto que o dedo da Morte estava pousado sobre o seu seio e que, tal como a efémera, só havia amadurecido completamente em beleza, para morrer» (pp.195, 196) –, quer dessem a conhecer o seu fascínio perturbante pela via da loucura, ou da aterradora ameaça dela – «Gostaria de os convencer de que fui, de um certo modo, escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controlo humano.» (p.101); «Os homens chamaram-me louco; mas a ciência ainda não nos ensinou se a loucura é ou não a suprema inteligência, se quase tudo o que é glória, se tudo o que é profundidade, não vem de uma doença do pensamento, de um modo do espírito exaltado a expensas do intelecto geral.» (p.191). Não raro, as suas personagens se mostram toldadas por uma «melancolia fantástica» (p.138), revelando atitudes cismáticas, ritualísticas, dotadas de sobrecargas de sentidos de difícil perscrutação – «Li durante muito tempo – muito tempo –; contemplei religiosamente, devotamente; as horas passaram, rápidas e gloriosas, e chegou a profunda meia-noite.» (p.201). Concordantemente, Poe privilegia ambientes que tendem a ser soturnos, ambiências nevoentas, frias, ermas (ou seja, tudo o que associamos ao cliché de um género em que o autor foi, todavia, pioneiro – e um dos seus pontos mais elevados) – «Meti um archote através da abertura que restava e deixei-o cair no interior. A única resposta que recebi foi um tilintar de campainhas. Senti uma dor no coração… certamente devido à humidade das catacumbas.» (p.469) Este tipo de espaços adquire especial relevância quando confrontamos as descrições literárias de Poe com o que o autor prescreve, por exemplo, em A Filosofia da Composição: «sempre e pareceu que uma fechada circunscrição de espaço é absolutamente necessária ao efeito de um incidente isolado: dá-lhe a força que a moldura dá ao quadro» (trad. Jorge de Sena, in Sobre Teoria e Crítica Literária, Caixotim Edições, 2008). Edgar Allan Poe reincidia em motivos que lhe interessava utilizar como reforços estilísticos e temáticos – «Numa esquina da maciça parede rangia uma porta mais maciça ainda, solidamente fechada, guarnecida com ferrolhos e coroada de ferros pontiagudo.» (p.103); «A porta de ferro maciço também fora protegida com um forro semelhante. O seu peso produzia um gemido agudo e arrepiante sempre que as dobradiças se moviam.» (p.90).

E no entanto, algo salva Poe de ser um mero executante de escola – mesmo que uma fundada por si próprio (talvez simplificando em demasia a questão). Por um lado, a sua ironia é uma vacina eficaz contra a febre seguidista. Discorrendo sobre acontecimentos inverosímeis, exporá, por exemplo, com meridiana clareza, o que se passa «tanto na realidade como na imaginação da Senhora Radcliffe» (p.201), assim tratando com a aparente displicência de um sentido de humor subtil mas acerado a ultrafamosa autora de Os Mistérios de Udolfo. De resto, Poe transpõe o seu «cinismo» composicional aos próprios procedimentos e às fórmulas empregadas pela narrativa – «Não se imagine depois do que acabo de contar que vou desvendar um grande mistério ou escrever um romance.» (p.139); «Menos ainda devia pensar que a minha imaginação, saindo de um meio-sono, tivesse tomado a cabeça pela de uma pessoa viva.» (p.202) Não menos importante que a sua capacidade de relativizar e ironizar (princípios sobremaneira modernos, se pensarmos que Poe morreu em 1849) é a o alcance estético da sua escrita – «O barco não parecia mergulhar na água, mas rasgá-la, como a bolha de ar que rodopia sobre a superfície da onda. Tínhamos o turbilhão a estibordo, e a bombordo erguia-se o vasto oceano de onde tínhamos vindo. Elevava-se como um muro gigantesco, entrepondo-se entre nós e o horizonte.» (p.182) Precisão e variedade expressiva – «Os homens, regra geral, tornam-se vis gradualmente. No meu caso, porém, toda a virtude se desligou de mim de um só golpe, como um manto que cai.» (p.101) – aliam-se, impecavelmente, aos seus poderes de imaginação e ao arrojo da sua imagética – «erguiam-se em pequenos bosques, como explosões de sonhos, árvores fantásticas» (p.192).

Pelo volume das intervenções, e até devido à variedade dos registos em apreço, e para não incorrer em omissões involuntárias, segue-se a lista integral dos ilustradores, cada qual a cargo de um dos contos antologiados de Poe: Zé Burnay, Leonor Pacheco, Carlos Correia, João Sequeira, Ana Afonso, André Coelho, Luís Corte Real, Patrícia Cassis, Sónia Oliveira, Mosi, Ricardo Cabral, Daniela Viçoso, Uma Joana, Filipe Alves, Ricardo Venâncio, Patrícia Furtado, Luís Morcela, Susana Monteiro, Nuno Saraiva, Jorge Coelho, Osvaldo Medina, Sofia Neto, Miguel Mendonça, Luís Cavaco, Pedro Brito, Tiago Pimentel, Sofia Lobato, André Caetano.

Mais textos sobre Literatura? Por AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *