home INTRO(specção) Queer Porto 2018 – Teatro Municipal Rivoli

Queer Porto 2018 – Teatro Municipal Rivoli

“Precisamos de representações que nos humanizem e que façam os outros olhar para nós como humanos”. Quem o diz é B. Ruby Rich, em Dykes! Camera! Action!, o filme que levou para casa, e muito merecidamente, o Prémio do Público naquela que foi a quarta edição do Queer Porto, o irmão mais novo do Queer Lisboa criado em 1997, festivais dedicados ao cinema de temáticas LGBTQI+, únicos que o fazem no nosso país.
Dykes! Camera! Action! oferece uma visão cronológica do cinema lésbico, sobre mulheres lésbicas e feito por mulheres lésbicas, numa tentativa de materializar e dar forma ao que a teórica Terry Castle referiu como “a aparição lésbica”, quando se referia à dupla invisibilidade da mulher lésbica (invisível primeiro como mulher, depois como homossexual) e a sua presença quase espectral na produção cultural e artística quando, apesar de estar presente, é ignorada.
O documentário proporciona uma curta mas relevante viagem pelas várias fases do cinema lésbico: desde os anos 60, com filmes melodramáticos onde as mulheres lésbicas encontravam sempre um fim trágico (tais como The Children’s Hour (1961) ou The Killing of Sister George de 1968) aos anos 80, onde as mulheres lésbicas eram normalmente representadas como vampiras ou outros monstros, passando pelo New Queer Cinema, termo cunhado pela já referida B. Ruby Rich, com destaque para filmes como o enternecedor Go Fish (1994) de Guinevere Turner e Rose Troche (mais tarde responsável por um dos momentos de maior visibilidade das mulheres lésbicas na televisão americana, The L Word (2004) ou But I’m a Cheerleader (1999) uma sátira aparentemente inocente sobre o processo de cura da homossexualidade mas que reflete uma atividade ainda praticada nos dias de hoje). No documentário analisam-se ainda filmes como The Watermelon Woman (1996), meta-filme sobre uma mulher negra que tenta fazer um filme sobre outra mulher negra. Segundo a realizadora Cheryl Dunye, até a criação do mesmo não havia nenhuma representação de uma mulher negra lésbica. Aborda-se ainda a transposição de temáticas lésbicas para o universo de Hollywood, com filmes como Carol (2015) ou The Kids are Alright (2010), assim como a interseção entre etnia e orientação sexual, ao analisar Appropriate Behavior (2014), um retrato de uma jovem rapariga bissexual iraniana que tenta conciliar a tradição familiar associada à sua nacionalidade e a sua orientação sexual.
Há algo em comum a todas as mulheres realizadoras, escritoras e teóricas presentes no documentário: um forte sentido de dívida a quem as precedeu na difícil tarefa de abrir caminho para representações mais honestas e positivas da mulher lésbica, assim como a promessa de que haverá sempre mais temáticas de género (e universais) a abordar dentro e fora da tela.

María Irene Fornés ganhou nove Obie Awards pelas suas peças avant-garde. No entanto, o seu trabalho parece ser constantemente esquecido ou ignorado pela comunidade teatral ou pela academia. The Rest I Make Up, filme que recebeu uma Menção Honrosa no Festival, documenta os dias de Irene à medida que esta demonstra os estragos da doença de Alzheimer que vai apagando a sua memória a curto prazo. O resultado é um retrato terno, lírico e comovente, cujo tom melancólico nunca domina a narrativa. O documentário oferece uma visão detalhada da comunidade off-off-Broadway e da forma precária e inventiva como Irene criava as suas peças nos anos 70, em colaboração com outros artistas, ao mesmo tempo que a narrativa regressa ao presente para acompanhar Irene numa visita ao seu irmão em Cuba, a sua terra natal. Num dos momentos cruciais do filme, Irene recorda Susan Sontag, que descreve como o único e grande amor da sua vida. Um dos detalhes mais interessantes do filme é a ambivalência da memória e da forma como Irene nos relata eventos e relações passados, apesar de não se lembrar há quanto tempo não escreve uma peça ou quantos dias passou em Cuba. É ainda de salientar a relação simbiótica entre Irene, a câmara e Michelle Memran, a realizadora do documentário, e de como as duas mulheres se tornam também íntimas, sendo visível que, para alguém cuja memória falha, o processo de gravar imagens parece ser um recurso útil para não perder todas as recordações. Num determinado momento do filme, Michelle mostra a Irene imagens gravadas recentemente, lembrando-lhe algo já esquecido. No final do filme, Irene e Michelle estão numa varanda sobre um rio. Ao ver dois barcos, Irene inventa uma história sobre um deles seguir sempre o rasto do outro, impedindo assim que o rasto deste se apague, num processo de reforço do caminho percorrido por outro. “Tu és eu”, diz a Michelle, também lésbica e artista, lembrando-a como reforça o seu caminho, e perserva a sua memória ao capturá-la com a sua câmara, assim contribuindo para uma espécie de genealogia queer semelhante àquela previamente mencionada em Dykes! Camera! Action!.

O belíssimo Shéhérazade encerrou o Festival. O filme narra a história de amor improvável entre Zach, um rapaz que acaba de sair de um reformatório e que é rejeitado pela família, e Shéhérazade, uma jovem prostituta que divide um quarto com uma transexual toxicodependente. Eventualmente os três dividem o mesmo quarto, criando uma espécie de família afetiva alternativa, algo comum a muitos indivíduos LGBTQI+, dada a rejeição destes pela sua família biológica. Zach, transfóbico, violento e agressivo, passa a ser o proxeneta de Shéhérazade e das raparigas com quem esta partilha o espaço da rua. Depois de Shéhérazade ser violada e agredida por três amigos de Zach, este tem de decidir entre testemunhar a favor da rapariga ou ser fiel aos companheiros de gang. Shéhérazade é um retrato de reconciliação e reparação, um coming of age para a protagonista e Zach, cuja tenra idade parece inconciliável com a vida árdua que levam. Somos constantemente lembrados da infantilidade de Zach, cujas posses mais valiosas são uma mota e uma PlayStation, e de Shéhérazade, que dorme com o polegar enfiado na boca como chupeta. Zach testemunha a favor da rapariga, ao mesmo tempo que admite ter sido seu proxeneta, crime que o levará à prisão. A cena em tribunal é um dos momentos chave do filme, onde um dos lados defende os direitos das trabalhadoras sexuais enquanto o outro, simbolizado pelo poder masculino e patriarcal na forma dos três rapazes que agrediram Shéhérazade, defende que o corpo desta, por ser prostituta, lhes pertence.
Ao longo do filme, ganhamos carinho pelo jovem rapaz perdido e desejamos que o fio narrativo se inverta, para que a imagem inicial de Zach a sair do reformatório seja substituída pela que mostra Zach, cego de um olho e coberto de cicatrizes deixadas pelos seus colegas de prisão, atrás das grades, no final do filme. No entanto, Shéhérazade está livre e promete esperar por ele, um final feliz inesperado tendo em conta as atribulações do casal, mas reconfortante, tornando a película numa releitura moderna e feminista da história das mil e uma noites, em que a princesa homónima da protagonista aplaca a força assassina de um rei da Pérsia e conquista o seu amor.

Call Her Ganda é um documentário incómodo, que evoca um evento trágico de 2014: a morte de Jennifer Laude, uma mulher transexual filipina, às mãos de Joseph Scott Pemberton, um militar dos Estados Unidos. Mais do que uma leitura da transfobia, Call Her Ganda é uma complexa análise dos discursos de poder oficiais, onde se intersecionam as questões de género e as neo-coloniais. Ao mesmo tempo que nos é narrada a história de Jennifer pela sua mãe, pelo seu noivo e pelas suas amigas, também elas transexuais, ficamos a conhecer a história das Filipinas, de como passou de colónia espanhola diretamente para o jugo americano, tornando-se numa base militar, graças ao “Visiting Forces Agreement”, que permite às forças militares norte-americanas atracar e permanecer durante um curto período de tempo nas Filipinas. No entanto, casos como o de Jennifer, de violação por parte de militares americanos de mulheres Filipinas, têm sido evocados como prova do que parece ser um acordo unilateral, deixando as mulheres filipinas à mercê da violência. O documentário segue o longo e complicado processo judicial, onde Pemberton evoca o “trans panic”, uma variação do ridículo “gay panic”, como explicação para a morte de Jennifer, afirmando que teria sido enganado quando esta não o informou de que era uma mulher transexual pré-op. As imagens do julgamento são intercaladas com testemunhos da mãe e amigos de Jennifer, manifestações de apoio no Facebook e outras plataformas online a Jennifer, mas também a Pemberton, e ainda imagens da cobertura mediática que o caso teve, e que marcou uma mudança no que toca à visilibidade da transfobia e dos direitos trans nas Filipinas, assim como da hegemonia dos Estados Unidos praticada no país, a um nível individual, como acontece com a morte de Jennifer, assim como a um nível nacional e legislativo.
Apesar da condenação de Pemberton, uma pequena vitória para a família Laude, as autoridades americanas recusaram entregar o assassino para que este fosse preso, numa notória desautorização da ordem judicial filipina. À semelhança do que acontece em The Rest I Make Up, existe uma forte relação entre o sujeito que narra o documentário e o seu objeto de estudo. Call Her Ganda segue o percurso de Meredith Talusan, uma jornalista e mulher transexual, também filipina, que imigrou para os Estados Unidos e parece sentir uma afinidade particular com Jennifer e a sua morte violenta. Se há alguma falha em Call Her Ganda, talvez seja a sua visão unilateral dos eventos e as várias pontas soltas criadas pela aparente necessidade de criar um documentário um tanto asséptico, apesar deste incluir tantas imagens do corpo de Jennifer ao lado da sanita onde foi afogada ou na mesa de autópsias, assim como aquelas de Jennifer viva, que parecem ser poucas, dada a repetição constante da gravação caseira do que parece ser Jennifer num concurso de beleza. Regista-se ainda uma certa incapacidade em aprofundar aspetos jurídicos e legais das Filipinas ou até uma urgência desnecessária em questionar se Jennifer era de facto uma trabalhadora sexual, algo irrelevante para averiguar a culpa de Pemberton, criando uma tensão entre a ocupação de Jennifer e a relação com o seu noivo. Apesar de tais detalhes menos bem conseguidos, o filme confirma a força do documentário como forma privilegiada de expor realidades únicas e dar voz aos silenciados.

O momento mais comovente do festival foi certamente 1985, um filme independente e de baixo orçamento, tradicional dentro dos parâmetros de criação visual e narrativa cinematográfica e no que toca à sua temática: o flagelo da SIDA. O filme apresenta o regresso de Adrian à casa dos seus pais, conservadores e religiosos, numa tentativa falhada de lhes revelar que é homossexual e seropositivo. 1985 é filmado a preto e branco a fim de nos remeter diretamente aos trágicos anos 80 e à epidemia de SIDA que matou milhares de pessoas, com referências culturais que cristalizam o filme naquela época. No entanto, o cariz universal de 1985 torna-se transgeracional, se imaginarmos a perda irrecuperável que uma nova epidemia na actualidade implicaria para a comunidade gay. Um dos detalhes mais relevantes do filme, e que o distancia das muitas outras narrativas trágicas sobre a SIDA, surge na forma do irmão de Adrian, que simboliza uma nova geração de homens gay. Adrian parte de novo para Nova Iorque sem se despedir do irmão, mas deixa-lhe uma cassete-testemunho sobre o que é ser um homem homossexual e as dificuldades que o rapaz irá encontrar, enquanto lhe oferece apoio e carinho num discurso comovente. O filme faz-se de silêncios. Adrian não consegue contar aos pais porque voltou a casa para uma rápida visita, e nunca nos é dito que o irmão de Adrian é homossexual. Tal é apenas é sugerido pelos gostos musicais do rapaz e preferência pelo teatro em vez do futebol, da mesma forma que o pai de Adrian, que tinha visto o filho abraçado a um amante, lhe pede que não fale da sua orientação sexual à sua mãe. No entanto, quando a mãe de Adrian o leva ao aeroporto e se despede do filho pela última vez (apesar de ignorar que não verá mais o filho vivo), diz-lhe estar pronta para saber a verdade quando o filho estiver pronto para a contar.
Entre o que é dito e o que fica por dizer, 1985 deixou a plateia do Festival verdadeiramente comovida, quer pela inevitável morte prematura de Adrian, quer pela aceitação problemática pelos pais deste, assim como pela projeção de um futuro menos homofóbico e trágico para o irmão de Adrian. No final do filme, eram muitos os narizes a fungar, aquele tossir que tenta esconder as lágrimas e o plástico de pacotes de lenços de papel, numa manifestação física e emocional da influência do cinema e da importância de ver representações (mais positivas) de indivíduos queer na tela, assim como do poder de nos sentarmos no escuro do cinema em comunidade.

https://www.youtube.com/watch?v=9vwn2YIuniM

Os nossos agradecimentos à organização do Queer Porto pela simpatia e disponibilidade.

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