home Antologia, LITERATURA Quinzinzinzili – Régis Messac (Antígona, 2017)

Quinzinzinzili – Régis Messac (Antígona, 2017)

Quinzinzinzili. Este é o (quase) impronunciável título de um dos mais conhecidos romances de Régis Messac (1893-1945). Desde a primeira página, através de uma escrita em forma de diário, Gérard Dumaurier conduz-nos, quase em estado de delírio, por uma história pós-apocalíptica em que assistimos ao nascimento de uma nova humanidade.

Inicialmente é-nos dada a conhecer a “velha humanidade” que, com a luta pelo poder e o desenvolvimento bélico, acabou por levar o Mundo, tal como o conhecíamos, à extinção. Tudo aconteceu quando um cientista japonês inventou um gás que deveria destruir apenas os inimigos do seu país. Contudo, toda a humanidade, com a exceção de Gérard e um pequeno grupo de crianças, acabou por ser dissolvida. «Resta-me explicar por que ironia cósmica consegui sobreviver, sozinho na Europa certamente, com um pequeno grupo de crianças.» (pág. 39) – eis o mote para as seguintes entradas, em que conhecemos um pouco melhor a “triste fortuna” que atingiu o nosso narrador.

Entramos assim numa nova parte da história, em que nos é descrito o terrível ataque e os tempos que se seguiram ao lançamento do gás mortífero, que fez com que os homens morressem com aparência de se estarem a rir – “Era assim que os homens deviam morrer, pois rir é próprio do homem.” (pág. 34). Isto obrigou a que os sobreviventes permanecessem nas grutas que visitavam no momento da catástrofe. Durante dias, tiveram que sobreviver apenas com o que encontravam no seu interior. Acabaram por adotar o local como lar, mesmo depois da purificação da atmosfera, pois não tinham para onde ir. Toda a humanidade estava destruída.

Começou assim a desenvolver-se aquilo que é chamado de ”nova humanidade”, e nesta fase deparamo-nos, pela primeira vez, com explicações divinas para o que o grupo de crianças (que o nosso narrador não se atreve a integrar), não consegue explicar. Quinzinzinzili, que dá o título ao livro, é a figura do Deus omnipotente que clarifica todas as dúvidas a estes jovens e ignorantes seres.

Os segmentos seguintes detalham o desenrolar da “nova vida”, sendo narrado o início e evolução daquilo a que Dumaurier hesita em chamar de “civilização”, de tão selvagem que é. São-nos descritos os seus hábitos e instintos animalescos, que prevalecem sobre tudo o resto e que vão desde o desejo sexual ao homicídio. Isto é acentuado pelo facto de restar apenas uma fêmea nesta “nova humanidade”, que será alvo de violenta disputa entre os machos sobreviventes.

Assistimos ao desenvolver de uma sociedade com a qual o nosso narrador não se identifica, pois acredita que a “velha humanidade” a que pertencia era superior. Nesta nova sociedade, prevalecem os interesses individuais, o Eu superioriza-se ao Nós, a vontade individual é mais importante do que aquilo que é melhor para o grupo. Surgia uma cidadania sem princípios nem valores, apenas regida pelo que a cada momento passava pela cabeça dos ainda jovens sobreviventes. Estes acontecimentos foram como um regresso à idade das cavernas, em que o instinto prevalecia sobre tudo o resto. Em suma, a sobrevivência acima de qualquer padrão ético ou moral. No fim daquilo que se tentou que fosse um breve resumo, deixamos à curiosidade do leitor a descoberta da magnífica história contada neste livro.

Durante toda a narrativa, denotamos um tom crítico relativamente aos acontecimentos do período entre as grandes guerras, em que Messac escreveu Quinzinzinzili. Na sua perspectiva, a II Grande Guerra seria a mais mortífera e, talvez, a última guerra de sempre, pois a humanidade seria dizimada. O resultado da guerra não foi esse, mas é certo que nos dias de hoje, cerca de oitenta e três anos depois de a obra ter sido escrita, com o desenvolvimento tecnológico, tal previsão seria bem mais correta e provável. Concluindo, somos como que forçados a concordar com o autor, quando nos diz, por via do seu narrador “Quando penso no futuro, vejo um novo calvário colectivo, uma nova ascensão penosa e dolorosa em direcção a um paraíso ilusório, uma longa série de crimes, horrores e de sofrimentos.” (pág. 157).

No fim de contas, Quinzinzinzili, apesar de escrito na primeira metade do século XX, continua muito atual na sua mensagem. No início de uma “nova humanidade”, vemos os mesmos vícios da civilização anterior, continuando o poder e o desejo sexual a desempenhar um papel extremamente importante nos comportamentos do Homem. Esta obra de leitura simples faz-nos pensar que poderíamos perfeitamente substituir o nome dos líderes políticos da época pelos de agora, que o resultado seria o mesmo, tal é a sede de poder a que assistimos. É um livro muito recomendável para quem pretender despertar o pensamento e reflectir sobre a sociedade em que vivemos.

Texto de João Rocha

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