home Didascálias, TEATRO O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão – Teatro Meridional, 25/05/2017

O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão – Teatro Meridional, 25/05/2017

O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão é uma obra do escritor francês Eric-Emmanuel Schmitt que narra, de forma límpida, fluida, com um sentido de humor mordaz e leve, a transpirar frescura, a história da relação de amizade, que gradualmente se estreita, entre um menino judeu, Moisés, e um merceeiro árabe. Na Rua Bleue, em Paris, pela mão do senhor Ibrahim, Moisés transforma-se em Momo, o diminutivo com que Ibrahim, na sabedoria da sua velhice, o baptiza.
O Teatro Meridional chama-nos a refletir sobre as memórias e as pessoas que marcam o percurso que fazemos sobre os estilhaços da vida
No palco, apenas Miguel Seabra e o músico Rui Rebelo, ao piano. O espaço cénico com uma luz morna, intimista e terna, mostra-nos que a singeleza de uma boa interpretação e pequenos apontamentos cénicos são suficientes para nos transportar para o universo do texto.
Miguel Seabra dá-nos tudo no monólogo: Ibrahim, Moisés e a sua mãe, o seu pai, as prostitutas com quem descobre que uma mulher nunca se rejeita e que há que guardar sempre um presente na algibeira para compensar a ternura que lhes faltar. E tudo é mesmo tudo. Miguel Seabra transporta-nos para outro lugar. O texto, assumidamente lido em alguns momentos, é tão seu, sem ponta de exagero, sem esforço, com tamanha suavidade, suficientemente sincopado, com a respiração e as pausas certas, a dramaticidade adequada, que nem pequenos atropelos retiram qualidade à interpretação.
É com Ibrahim que Momo, de furto em furto carinhosamente consentido pelo merceeiro árabe, redescobre o mundo, a sexualidade, as mulheres, substitui a poeira dos livros do pai (livros que não entende, que não falam, não lhe dizem palavras nem sentimentos e repousam, distantes, nas prateleiras) pela beleza do Corão. O pai, um advogado cinzento, amargurado e preso a um passado doloroso que não lhe dá espaço para a ternura, que o faz refém de uma tristeza que não é sua, é compensado pela doçura escondida de Ibrahim. E, facilmente, na batalha dos “ismos” travada no dicionário Larousse, prefere o islamismo ao legalismo. Com Ibrahim, Momo aceita que até Brigitte Bardot pode ficar rendida ao charme de um árabe velho e esse encantamento pelo amigo merceeiro é o amor refeito.

Com Ibrahim, Momo descobre que o sorriso é uma arma à qual só o pai não sucumbe, arma que usa com a filha do porteiro, por quem todos os meninos se apaixonam, arma que usa com a professora. Com ele, percebe que o amor é uma dádiva que se multiplica: “O que dás é teu para sempre, o que guardas está perdido para sempre”. Com Ibrahim, Momo percorre Paris e os teatros de fantoches; com Ibrahim, Momo descobre o mar da Normandia. Com ele, o seu amigo árabe, liberta-se das memórias de um “irmão” ausente a quem o pai o compara recorrentemente, fustigando-o com uma sensação de inferioridade, e o fardo de ter sido abandonado pela mãe. É nessa amizade que se redescobre quando o pai se deixa esmagar por um comboio. O mesmo comboio que um dia levara os seus avós para o campo de concentração.
A morte do pai é o início de uma redescoberta do seu espaço no mundo… E a morte de Ibrahim, a jornada pela sua história de ontem e de hoje.
Moisés é agora Momo. É agora árabe. Como forma de ser. Como escolha. Sem medos. O que quer que isso seja. Momo tem a sua mercearia e apaziguou-se com o seu passado reescrito.
A peça ensina-nos a tolerância e a ternura. Várias vezes. Fala-nos do que somos. Pessoas que se refazem, diariamente. Que se redescobrem.

O Teatro Meridional merece visita sem hesitações. O espetáculo merece ser visto e sentido.

Texto de Joana Neto.

Joana Neto, por defeito profissional, escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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