home Antologia, LITERATURA 1933 foi um mau ano – John Fante (Alfaguara, 2017)

1933 foi um mau ano – John Fante (Alfaguara, 2017)

John Fante (1909-1983) é um dos escritores mais amados do século XX, principalmente nos EUA, incondicional entre admiradores e herdeiros, como Bukowski e Hemingway. Em vida, o reconhecimento teimou em escapar-lhe, mas personagens como o inesquecível Arturo Bandini forjaram a sua identidade literária de forma perene e influente. De forte pendor autobiográfico, o seu estilo é pungente e despretensioso, focado na intimidade das famílias italo-descendentes que fogem do Velho Mundo rumo à terra prometida americana, plenos de esperança, apenas para constatarem que o Sonho Americano não passa de uma invenção europeia, uma utopia entre tantas outras. O que resta, entre todas as disfuncionalidades, frustrações e privações de uma vida dura, é o amor incondicional da família, que sempre brilha em cada narrativa.

A escrita é exemplar, um verdadeiro exercício de sensibilidade e atenção ao detalhe, sem necessidade de grandes intróitos, explicações ou sequer descrições. Cada palavra vale por si e não há espaço para desperdícios, nem de tempo nem de atenção, porque cada personagem é pensada e escrita para permanecer na memória, não como um tipo ou uma generalização do que deve ser um jovem de 3ª geração de uma família de emigrantes italo-americanos, ou uma avó respondona e conservadora, ou um pai que procura fora de casa o amor e a tranquilidade que lhe falta entre paredes, mas antes como entidade multi-dimensional, naturalmente condicionada pela sua circunstância, mas ainda e sempre capaz de criar laços de empatia e ternura com quem a conhece nestas páginas. Porque é ternura e Amor que aqui transparece, mesmo nos momentos mais dramáticos.

“Os tempos eram difíceis, certamente, com a depressão no seu pico, mas um futuro glorioso esperava aqueles que eram bafejados pela fama.” 1933 foi mesmo um mau ano, e não apenas para o nosso herói Dominic Molise, que “Dentro de seis meses teria dezoito anos e terminaria o ensino secundário. (…) dentes tortos e a cara cheia de sardas, como um ovo.“, para quem “o Braço” (apelido que dava ao seu braço esquerdo, “o sagrado braço que foi obra de Deus“, com quem tinha longas conversas e besuntava com ungentos mal-cheirosos) era o passaporte para cumprir o sonho de ser um grande profissional do basebol e alcançar fama e riqueza que, de outro modo, lhe estariam interditas. Ainda na ressaca do crash bolsista do início da década, também a sua família e toda a cidade onde habitava tinham sido dilaceradas pela crise, com os rendimentos familiares reduzidos aos biscates que o pai ia desenrascando. “Um homem conseguia suportar qualquer crise temporária, se tivesse fé no futuro“. Dominic agarra-se com unhas e dentes à Fé, não apenas em si, mas em Deus e Maria: “às vezes acreditava, quando estava para aí virado.” Numa das cenas mais cómicas do livro, afirma ter uma visão da Virgem no quarto. A Fé acaba por tornar-se uma forma de sobrevivência, escapismo para suavizar a sua passagem pela escola, em que as freiras se encarregavam do ensino, deliciadas com as suas beatices. “Preces. Oh, preces! Oh, o recurso ao vazio para pedir pequenos favores“.

A família é o centro nevrálgico da sua existência. A carismática Avó Bettina, anciã da família e fortemente apegada à sua aldeia de Torricella Peligna, na terra natal de Abruzzi, recusa integrar-se na nova realidade americana, que critica a cada oportunidade, chamando-lhe “terra de bárbaros” e “Só falava italiano e fingia que não percebia inglês sempre que o assunto não lhe agradava.” Entre rajadas de insultos a todos os familiares, dizia: “A América tombaria num mar de chamas, provocadas pela deflagração de companhias de electricidade“. Dominic via para além dessa agressividade, toda a solidão e saudade da sua Itália. “Eu sabia que ela sofria e compadecia-me dela. Ela estava só, com as raízes suspensas numa terra desconhecida. (…) A minha avó era um dedo arrancado ao resto do corpo e nada na sua nova vida podia amenizar a sua dor“.

A mãe, nascida em Chicago, “uma frágil desajustada“, nem italiana nem americana, aparentava ser mais velha do que os seus quarenta anos, desgastada por uma vida de trabalho, limitada a fazer “aquilo que lhe cabia, submissa de acordo com a vontade de Deus“. Desconfiava das ausências prolongadas do pai, mas sempre lhe faltou a coragem para o confrontar.

Quanto ao Pai, “eram os seus jogos de bilhar que nos permitiam atravessar o inverno“, porque o trabalho escasseava. Quarenta e cinco anos, “mãos gigantescas“, “mesmo com a roupa de trabalho parecia elegante por causa das gravatas brancas que gostava de usar, e do bigodinho que mantinha meticulosamente aparado.” Figura tutelar, o respeito reverencial impunha-se pela sua mera presença em casa, apenas para comer e dormir. Desde a infância que tenta aliciar o filho para a “arte da alvenaria“, em que, apesar de exímio e por muito que se esforçasse, “continuava pobre (…) até que se tornou claro que não tinha culpa de ser pobre; a culpa era do ofício“. A Dominic falta a coragem de lhe revelar o sonho que o impele e, embora certo de que nunca será pedreiro, oferece-se para ajudar. Os irmãos, Clara e Frederik, pouco contam para a acção, mas funcionam como projecções. Clara é uma conservadora em potência, Frederik um puto sonhador, para quem a idade adulta tarda em chegar.

Num dos mais belos parágrafos do livro, toda a dinâmica familiar no lar de Dominic é descrita em poucas palavras: Sonhadores, éramos uma casa de sonhadores. A Avó sonhava com a sua casa na longínqua Abruzzi. O meu pai sonhava com não ter dívidas e assentar tijolo com o filho a seu lado. A minha mãe sonhava com a sua recompensa divina: um marido feliz que não fugisse. A minha irmã Clara sonhava tornar-se freira e o meu irmãozinho Frederick (…) um cowboy. Quando fechei os olhos, consegui ouvir o zumbido dos sonhos que percorriam a casa, e então adormeci.

A outra relação central de todo o livro, descrita com grande acuidade e inteligência por parte de Fante, é a de Dominic com o seu melhor amigo Ken Parrish, com quem treinava, irmão da sua grande paixão Dorothy Parrish (o episódio em que se cruza com ela pela primeira vez é de ir às lágrimas), que o trata com um subtilmente desdenhoso “italianito”. Filho mais velho de uma família abastada, encara a vida com a exuberância e displicência de quem sabe ter o futuro garantido. Dominic percebia cada momento em que usava estratégias para exibir toda a abundância que o rodeava, mascarando a atitude sobranceira com um hipócrita desprendimento do material. Entre ambos estabelece-se uma volátil dinâmica de mútua validação dos sonhos, planos e desejos mais recônditos (Ken sonha abandonar o negócio da família, para se “pirar desta terra desolada“), até ao dia em que este frágil equilíbrio se desfaz, ante a impaciência e fúria do nosso Dominic perante a impassividade e insensibilidade total de Ken.

Todo o livro vive das clássicas dores do crescimento, o universal e intemporal choque entre a realidade e as expectativas, entre os sonhos e a dureza dos dias em que nada é certo, espiritual e biograficamente. A inocência quase crónica, a imaturidade inconsciente, casadas com uma aguda e amiúde hilariante consciência de si, permitem a Dominic ir escapando às armadilhas de um quotidiano desenhado para a mediocridade e não para a falsa propaganda da excepcionalidade e, a custo, escava o seu percurso entre as neves altas que o circundam. Colocado diante de uma escolha entre a família e o amor pueril pela irresistível Dorothy Parrish, Dominic terá que tomar uma decisão no final do livro, capaz de mudar a sua vida.

Em Fante, o respeito irreverente pelas raízes e valores dos seus antepassados mistura-se com o buliço de um ideário em que a regra é o avanço constante, tendo por cenário um período central da História da Humanidade e da formação de uma nação que viria a liderar o Mundo durante décadas, sustentada por ilusões de grandeza, como as de Dominic e de tantos outros milhões de anónimos, com os olhos num futuro melhor para si e para os seus.

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