A Amiga Genial é o primeiro volume duma tetralogia escrita por Elena Ferrante, dedicada à amizade entre duas raparigas nascidas num dos bairros limítrofes da Nápoles dos anos 50, em que a miséria é um dialecto, a violência é a moeda corrente e a esperança numa vida melhor é prisioneira das convenções sociais numa sociedade profundamente conservadora e machista.
Ninguém sabe quem é Elena Ferrante. Especula-se até que poderá ser mesmo Elena Greco, a exímia narradora (e em simultâneo,uma das personagens principais) que desvenda os mistérios da sua vida, em redor da qual gira a narrativa. Esse é um dos pormenores mais formidáveis desta obra: seja ou não um relato autobiográfico, o tom que nos impõe a escrita é esse mesmo, descrevendo com espantosa precisão todas as matizes que esboçam uma vida, desde os mais recônditos momentos perdidos na infância.
A nível da escrita, não lhe notamos nada de inovador ou propriamente carismático, sendo inclusivamente um pouco extemporânea. Quando muitos dos seus contemporâneos preferem um narrador à margem da narrativa, mas que se intrometa ocasionalmente com alusões pessoais, a autora opta por uma narração ortodoxa, na primeira pessoa, preenchida de momentos descritivos bastante conseguidos, depurados na medida certa. Mas a força desta obra reside no esmero com que é debruada toda a narrativa.
A acção arranca com o desaparecimento de Lila, a amiga genial que de imediato se percepciona como o epicentro de toda a história. Movida por uma pulsão que, neste primeiro volume, ainda não podemos compreender na totalidade, Elena ou Lenú, a narradora, decide escrever as memórias da vida que partilham. Começamos na primeira infância e atravessamos-lhes toda a adolescência. No entanto, rapidamente percebemos que na aparente tentativa de descrever aquela rapariga singular e o poderoso fascínio que a sua personalidade vincada exerce na amizade entre as duas, Elena Ferrante está na verdade a descrever outra coisa.
Primeiro, está a pintar um poderoso retrato da própria narradora: o profundo desejo de validação, tantas vezes desajustado da realidade em que se insere, a forma como lida com esse mesmo desajuste e as expectativas que nela provoca; o distanciamento social, que começa na própria família e que ao longo da narrativa se vai estendendo à restante comunidade; a exploração da sua feminilidade, com as descobertas sexuais próprias da juventude e o que carregam nos trâmites sociais que a cercam. Tudo exemplos de como a ignorância é o combustível da miséria, e no fundo, ensaio impactante acerca de como a mudança se inspira nas mais pequenas coisas, inclusivamente na perseverança de uma criança ou jovem mulher.
Mas a autora vai para além disso, representando magistralmente também a própria natureza humana. Há quem não nutra especial apreço pelo rodopio de personagens que vão assomando durante esta leitura, talvez porque se torna difícil não nos perdermos em tão intrincada tapeçaria, mas a verdade é que isso redunda numa crítica injusta. Esta vastíssima miríade de personagens não nos é apresentada de forma descuidada, para encher papel. Elena Ferrante desenvolve cada uma delas com finura, detalhando as dores de crescimento femininas numa sociedade profundamente machista e patriarcal, as agruras da luta de classes num tempo em que as desigualdades nos faziam mais díspares. Assim, cada personagem adquire um certo simbolismo, vincando contextos que influem de forma directa na narrativa: Dom Achille, fascista temido por todos, Pasquale, comunista nascido do proletariado, os irmãos Solara, símbolos da promiscuidade social com a Camorra, são alguns exemplos disso mesmo.
O desenho das personagens e as profundas reflexões disso recorrentes que invadem a narração, marcam o tom para os volumes que se seguem, o que indicia a verdadeira dimensão desta obra: um poderoso retrato duma época determinante para compreendermos não só a Itália de hoje, mas também o mundo como o conhecemos (se nos dispusermos a esquadrinhar as entrelinhas que moram bem no fundo da narrativa).
https://www.youtube.com/watch?v=V2Yk8xJkMKQ
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