home Antologia, LITERATURA A Axila de Egon Schiele – André Tecedeiro (Porto Editora, 2020)

A Axila de Egon Schiele – André Tecedeiro (Porto Editora, 2020)

O meu primeiro contacto com a poesia de André Tecedeiro foi no lançamento da antologia Casa, pela editora do lado esquerdo, responsável por dois livros do poeta que fazem agora parte desta coleção editada pela Porto Editora. Se é verdade o que Tecedeiro escreve, e que “cada um lê no poema/ o poema que traz em si” (187) talvez isso explique a minha escolha de ler, naquele dia em particular, o poema que Tecedeiro escrevera para a antologia, um poema sobre casas sujas, “tão sujas que pedem black metal por banda sonora” (134). “Por não ter medo de mexer nas zonas que outros evitam, o poeta é campeão a lavar sanitas”(136) e Tecedeiro não tem medo de mexer no interdito, no indizível, “do que não é possível traduzir” (34). Chovia muito nesse dia e as casas e as pessoas ficaram lavadas, por dentro e por fora. A axila de Egon Schiele (2020) reúne seis anos e cinco livros de poesia, mais alguns poemas dispersos, de André Tecedeiro, cuja ocupação oscila entre as artes visuais e a poesia. Rituais domésticos, a escrita, o corpo, o amor: em Tecedeiro há lugar para tudo, em poemas breves, rasantes, em que cada palavra é colocada sobre a página com precisão cirúrgica, como uma colagem composta de pedaços colados com “uma pinça de aço frio” (62). Não há palavras a mais, nem imagens em catadupa: a poesia de Tecedeiro é quase um instantâneo fotográfico, uma impressão, conseguindo executar com destreza a difícil tarefa de se ser cortante e escrever com precisão ao mesmo tempo que se convoca imagens tão afetuosas como sujas, tal como as casas ou “tudo o que o amor possa ter de sujo” ao qual “brindaremos em copos de cristal” (9).
O tempo de Tecedeiro é contado em cigarros, noites de sono e “um amor um/ amor,/ Uma vida uma/ vida” (14) até que seja altura da morte, essa “coisa/ que nos vai acontecendo/ várias vezes ao dia” (11). A figura espectral do poeta é aquela de “um fantasma que vive para dentro” (22), um espectro que vagueia pela cidade, “nu sobre a multidão” (27), numa justaposição (e também contraste) entre quem está fora e quem está dentro, o que é casa ou corpo, autocarro ou rua; o olhar é virado para dentro, para uma reflexão que nos despe “antes que me dispam” (27) nessa árdua tarefa do dia a dia que é ser-se visto, e vestido, pelos outros, a subjetividade marcada pela olhar sobre si mesmo, pelo voltar para dentro, pois “eu começo onde me descubro” (29). Esse fantasma, espectro que tudo vê e que não é visto, escapa ao “real e ao resto” pois “aos poetas/que mal lhes fica o corpo./ É como se não lhes pertencesse” (28): esta figura do corpo líquido do poeta ganha força na imagem da pele que se despe, que se afasta do corpo, “como collants finíssimas” (30). Mas se o poeta é espectro, o poema é, por outro lado, carnal, onde o corpo existe como espaço de inscrição, invasão, resistência, um corpo de “carne…muito forte” e que, “por isso se diz que a carne é fraca” (65) um corpo que é ainda “armadura” que trai duas vezes: “foi insuficiente para defender o golpe/ foi eficaz a esconder a ferida” (67). E mesmo que o olhar seja para dentro, este olhar cai também sobre os outros, sobre marinheiros que urinam para o mar, num “encontro de todas as águas” (41), sobre a mulher que abençoa com a mão todos os passageiros do metro, sobre a jovem rapariga que arremessa de volta a moeda contra a perna do poeta, insatisfeita com a esmola: o olhar para dentro faz ricochete nos outros antes de entrar corpo adentro, e desce depois até às mãos, onde ainda “restam palavras” (48) para “escrever agora … presa a qualquer coisa que não sei/ mas que me agarra por dentro/ como dedos muito enfiados na garganta”(48).
As ânsias do corpo tomam as rédeas, ditam a experiência do dia a dia e a poesia de Tecedeiro parece ser, acima de tudo, um manifesto sobre o que é viver com e dentro de um corpo, um corpo que parece, por vezes, estranho e em dissonância com as suas entranhas, onde muito fica escondido debaixo da pele: “Não há solidão/ comparável/ à de vivermos longe de nós” (59), escreve Tecedeiro, cristalizando em três linhas cortantes a distância entre nós mesmos e os nossos corpos, corpos com pernas que não podem correr ou braços impedidos de abraçar (103), que são ao mesmo tempo sítios para onde se escapa ou de onde se tenta escapar, como ilustrado em A Arte da Fuga, livro dedicado a quem foge, do corpo e da cela.
Os ratos que fazem casa e procriam num ninho de veneno azul, “os pedaços de mapa devorados/ pelo bicho da prata” que “[s]ão também parte do mapa” (76) onde a ausência é também parte da cartografia, as “coisas que me transcendem,/ mas estão todas dentro de mim” (79): é no avesso da pele que Tecedeiro escreve, no inverso das coisas, entre a dor “que uma superfície pode esconder” (83), com as costuras do corpo expostas porque “[é] na cicatriz que a pele é mais sábia” (156).
“De faca na mão/ esculpindo totens” (72) Tecedeiro molda poema, corpo e mundo à sua medida, num processo de transformação diária em que “[o] sentido da vida/ é continuar”(40). “Nem sei usar o mundo/ sem o transformar numa outra coisa qualquer:/ em tudo o que me cerca vejo plasticina” (72): há no poema, no corpo e no mundo a ânsia e o potencial de mudar, de refazer o que nos foi imposto, de transformar carne e palavra, e carne em palavra. Num dos poemas mais acutilantes da coleção, Tecedeiro, da mesma forma precisa com as palavras, oferece-nos uma honesta observação sobre a plasticidade do corpo, a liquidez da água e a forma como o primeiro, sendo composto em grande parte pelo segundo, se adapta, como a plasticina, à forma que queremos que ele tome, contra os moldes e rótulos de nós mesmos que nos são impostos desde a infância, “porque nisto de se ser homem ou mulher,/ o rótulo é o mais importante” (138). “Sem saber, um caminho:/ Ana, Anita, André/ Três pontos definem um plano” (137): o livro de Tecedeiro termina com uma conversa entre André e Laura, uma conversa caseira que oscila entre passeios a pé, uma fotografia de John e Yoko, mudanças de casa e lugar, família; não é só André que ganhou um novo nome, Laura é também, para Simão, uma Laura diferente, com múltiplos nomes, em momentos distintos, lembrando o leitor que todos os corpos e nomes, cada um à sua maneira, possuem em si mesmos a plasticidade da mudança e uma multiplicidade de identidades, em diferentes momentos, para diferentes corpos, em diferentes casas.
A axila de Egon Schiele é escrito do avesso: é o âmago das coisas que Tecedeiro agarra e traz à luz, numa poesia profundamente honesta, rica em imagens e jogos de palavras e de poemas que, mesmo reduzidos por vezes a algumas linhas breves, são tão cortantes como “os cem cortes nas costas do banco” (46) ou “a lâmina da faca” (163) onde pousa uma borboleta. É assim que se constrói uma casa, com outros corpos, de namorada e filho, com peixes chamados Fred, com objetos do dia a dia, com flores em garrafas. Como as casas, o corpo é construído segundo um plano, uma planta de “anos que passei/ perdido no medo” (161) e “desejos impossíveis” (137), é decorado e remodelado, ganha novos hóspedes de nomes novos,de hóspedes antigos de novos nomes, é habitado e eventualmente abandonado. Tal como as casas, é também quando se renova o corpo que se ganha espaço para o habitar. E por vezes, depois de despir paredes e pele, encontramos um lar.

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