Mala cheia, bolsos vazios. Acumulamos palavras estrangeiras, imagens tantas, ruídos imperceptíveis. Apreendemos sons através de novas palavras. Rasgamos barreiras, interceptamos destroços, encontramos outros corpos pelo mapa de outras cores. Todo o percurso desrotineiro é uma aproximação ao nomadismo e esta busca pela acumulação de memórias futuras uma necessidade. Trago dezassete quilogramas dessas (i)materialidades na mala maior (acompanha-nos há tantos anos que chegámos ao osso das suas rodinhas que ainda permitem à mala cumprir a sua função). Penso para onde irá (que utilidade trará) todo este peso ainda imperceptível? Estes pensamentos colados ao silêncio do avião, do comboio, do barco. A viagem experimentada em diferentes velocidades. Chegar mais rápido sem ver a mudança ou demorar-se pelas intrépidas transformações de terrenos? Olha ali!, somos fundados pelo corpo líquido das estátuas deslembradas no passado. Esqueço as roupas porque não preciso vestir as mágoas de certo Oriente. Miserável, insalubre, desgostoso. A cada euro poupado numa camisola, um grama de peso na consciência. Já todos sabemos desta história e da outra, que nos informam à distância confortável, da fome em África, dos refugiados climáticos a morrer no Atlântico, e no entanto seguimos. Cegos repousamos a consciência nesta mentira de discursos a que chamamos conseguir viver.
A mala em forma de livros. Para alguns, em forma de lixo. Um prolixo de livros em sacos abandonados, em farrapos, nesta curva. Preferia que fossem queimados e depois talvez se transformassem em notícia (vivemos enterrados nestes títulos escandalosos, um dia aconselharam-me, Queres viver da escrita? Escreve um título que dê clique). Ao menos, falávamos de livros. Folheio um futuro de ilusões criadoras. Quantas viagens preciso de não fazer para ler tudo o que preciso? Para ler e escrever tudo o que trago dessas viagens? Quando conseguirei travar estes saltos de autor para autor, de obra para obra, palavra em palavra? A cada texto desembrulha-se uma ideia, esculpe-se uma possibilidade de manuscrito. No meu escritório portátil, perante estas torres babilónicas de livros, um labirinto impossível de ansiedades me atormenta os dias, nesta era da produtividade técnica. Descubro o que diz Saramago, Escrever é um modo de viver, mas pressupõe ter vivido. E escrevo esta frase cem vezes. Escrever é um modo de viver, mas pressupõe ter vivido. Cem linhas repetidas por cem vezes escritas no caderno branco, no colchão abandonado como os meninos mal-comportados quando molestam a professora na escola. Encontro outros professores pela vida, mas prefiro não os referir. Um desses professores falava-me acerca do exagero destas referências. Ajoelho-me, concedo ao seu pensamento e entrego-me ao silêncio.
Viajar é levar, deixar e trazer coisas. Apesar disso compro pequenos postais. Trago vários. Já não se escrevem postais desde o estrangeiro (perdemos o romance epistolar, oh que pena), ainda assim vendem-nos coisas inúteis, como postais, com frases como esta: as melhores coisas da vida nem coisas são. O mapa da cidade divide-se entre compras e vendas. Convençam-nos do contrário nestas avenidas do desejo onde tudo se compra, tudo se aluga e tudo se vende. As asas do turismo voam pelas montras que escondem a cara das pessoas. Como podemos não acreditar que a cada metro quadrado de uma cidade tudo se pode converter em dinheiro? Até um sorriso, ou o desprezo. Pensa em algo que não seja o Tudo. Até o intangível. A arte, a criatividade, esse capital aplicável em qualquer área, está também à venda. Caminho vinte quilómetros por dia, nessas cidades, procurando o que resta de inútil, os pequenos gestos de afecto e atenção. Encontro um coração desenhado na calçada, por acaso. Ofereço uma bolacha ao homem-sem-qualquer-abrigo e ele cospe para os meus pés protegidos pelas botas quentes. Fotografo a frase tatuada na memória: as melhores coisas da vida nem coisas são. O sorriso dela é impossível de embrulhar, o teu abraço não cabe num saco e a única caixa onde pode caber o som daquele violino da Alexanderplatz é na nossa memória.
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