Porque nem só de novidades vive o Homem, hoje inauguramos um cantinho em que lançamos ideias e impressões sobre clássicos da Literatura. Começamos por André Malraux, com o livro que lhe trouxe o Goncourt em 1933.
A reedição de A Condição Humana (Livros do Brasil – Porto Editora, 2015), habilmente traduzida pelo genial e injustamente esquecido Jorge de Sena, reapresenta-nos um romance duro, porém humanista e profundo.
André Malraux penetra nas trevas da memória e da História, focando-se no que de transversal (e logo empático) se abriga na angústia dominadora da violência e da fé cega nos ideais, esmagados e submissos aos interesses de quem conhece a integralidade das regras da Arte da Guerra.
Questiona-se constantemente o Destino e o Livre Arbítrio, por pensamentos, palavras, actos e omissões, em contraponto com o que de mais primitivo nos identifica: a luta, tantas vezes inglória, pela dignidade na vida e por uma morte que a sustenha na nossa ausência, principalmente em tempos duros de crise, com esses valores postos à prova.
Como definimos ideais? Não serão também eles meras conceptualizações, artifícios onde escudamos a lembrança constante da nossa finitude, de que nos servimos para forjar uma densidade simbólica, capaz de resistir à inexorável passagem dos dias?
Será mais importante o modo como conduzimos a nossa vida ou como nos chega o fim? A quem devemos uma morte altruísta? A ideais de libertação e de justiça, pervertidos quando finalmente transformados em norma? A personagens mitológicas e sobre-humanas? A entidades matriarcais ou patriarcais, no topo de estruturas necessariamente falíveis, porque humanas?
O Massacre de Shangai de 1927 é o pano de fundo de toda esta teia de eventos e vidas cruzadas. Verdadeira purga, planeada pelo maquiavélico Chiang Kai-shek que, pela traição e repressão violenta, tornou o Kuomintang no partido chinês dominante, com a eliminação sistemática dos membros do Partido Comunista Chinês, espoletando uma guerra civil de uma década.
A Condição Humana escapa ao desgaste do tempo, pelo primor da linguagem, a riqueza quase cinemática da imagética e o elenco de personagens, de forte densidade emocional, presas numa situação impossível, onde qualquer atitude para além do avanço, significa a morte ou uma vida vazia de sentido.
“…aquele que procura tão asperamente o absoluto só o encontra na sensação. Sede de absoluto, sede de imortalidade, portanto, medo de morrer (…) o fundo do homem é a angústia, a consciência da sua própria fatalidade, de onde nascem todos os medos, mesmo o da morte…”;
“-Encontra-se sempre o pavor em nós. Basta procurar bem fundo: felizmente, podemos agir;”
Malraux legou à eternidade um livro que se lê e relê com o gosto e o espanto da primeira vez, com impacto imediato e permanente. Desde o primeiro capítulo, com a descrição pungente e realista de um assassinato, a apneia é imediata. Tchen, Katow, os Gisors, pai e filho, May e Clappique são nossos desde o momento da sua aparição, despidos para o leitor da armadura em que se movem, num Mundo tenso que se apressa a enxotá-los para o esquecimento.
“Não possuímos de um ser senão aquilo que nele mudamos”, diz-se algures.
Os laços entre estes seres têm a tessitura que só a guerra consegue urdir, essa válvula de escape accionada em momentos críticos, que destapa o melhor e o pior da nossa frágil circunstância.
“A extrema densidade de um homem toma qualquer coisa de inumano (…) Será porque nos sentimos facilmente em contacto pelas nossas fraquezas?”, pensa Kyo, em plena conversa.
Numa época em que a imortalidade é banalizada por uma cultura distorcida e uma vida valorosa se confunde com fama e proveito, o afortunado detentor de A Condição Humana corre o risco de ver reconfigurada a sua bússola ética e estética ou, na pior das hipóteses, contactar com o que deve ser um Livro.
Malraux agarra-nos pelos colarinhos, da primeira à última sílaba, e resgata para a eternidade personagens de outro modo irrelevantes, arredados da História mas dignos de referência, como quaisquer grandes protagonistas, pelo sacrifício abnegado do que têm de mais precioso.
Dos fracos não reza a História, mas sem eles onde encontrariam força os grandes líderes?
Bem sabemos serem demasiadas as questões, e escassas as palavras para definir o inqualificável, mas a boa leitura tem o condão de apaziguar as mentes. Perto do final, o velho Gisors, entre cachimbadas de ópio:
“Pode enganar-se a vida muito tempo, mas ela acaba sempre por fazer de nós aquilo para que fomos feitos.”
Mais recensões/crítica literária AQUI.