A companhia de teatro “O Bando”, em coprodução com o Teatro Dona Maria II, leva-nos numa viagem ao Inferno. O encenador, João Brites, transportará o purgatório a Coimbra e o paraíso ao Porto no espaço temporal de seis anos.
A “Divina Comédia” do poeta italiano Dante Alighieri é um poema épico e teológico, escrito no século XIV, constituído por três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso.
Conforme explicita João Brites na brochura do espetáculo, para a elaboração do guião da peça recorreram a várias traduções da obra. Numa primeira fase, a base é a versão de Vasco Graça Moura, um estilo mais arcaico e literário, depois uma versão brasileira, seguida da tradução de Susana Mateus diretamente do italiano. O recurso a várias traduções, nomeadamente em prosa, explica o movimento, a fluidez do texto, sem um pendor arcaizante e distante do público. Uma solução feliz.
O início da peça, que prima por uma cenografia impactante e um trabalho de luz e som de uma importância crucial para criar a envolvência necessária através de uma atmosfera densa, forte, angustiante que, por vezes, nos encurrala numa espécie de periclitante dormência, é marcado por atores numa corrida desaustinada pelo palco, em círculos, como se de um exercício de improvisação se tratasse. E percebemos que a dramaturgia surgiu a partir de um processo de construção que nos convoca.
Dante (João Grosso) surge no meio dos restantes atores, com eles, entre eles e conduzido por Virgílio, para ver, de fora, o inferno por dentro… E é com estranheza que os vamos observando, completamente externos a nós, a falarem-nos de um universo bizarro, pejado de monstros humanos, repleto de corpos putrefactos e de cheiro nauseabundo. Quem de nós quer habitar o inferno e conhecer a dor e a tortura infinita?
O testemunho de Ugolina e o relato da sua profunda dor e agonia, no cárcere com os seus quatro filhos, leva-nos para dentro do inferno. Sim, podíamos ser nós apesar da descrição grotesca.
A chegada das Fúrias é expoente da alegoria à perversidade das relações de poder,da hierarquia e da lei como instrumento de subjugação. A mentira com que encurralam Dante, que virando à direita encontraria uma ponte inexistente, fecha-se com a resposta: “à esquerda”. O caminho é pela esquerda, mas nem por aí há garantia de saídas. No inferno não há espaço para a indiferença ou a neutralidade. Parafraseando Dante: “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.”
Os mais altos representantes da igreja não são poupados, bispos, cardeais são representados associados à corrupção e à devassa. Moisés e Cristo são invocados como mártires, mas judeus, cristãos, muçulmanos são tanto vítimas como algozes. A atualidade e a crítica política estão lá, sem subterfúgios, crítica sobretudo à violência ínsita na religião, enquanto escolha derradeira entre o bem e o mal, o estar ou não estar dentro de fronteiras que espartilham pelo julgamento que delas brota.
Se é certo que a cadência da peça nos pode expulsar, por momentos, do espetáculo, não é menos verdade que a beleza singular daquele universo de cor, embrincado em simbologias, feito de chapéus sonhadores, é esteticamente esmagadora e nos reaproxima do palco.
Dois momentos se assinalam.
Aquele em que a luz baixa e as almas descem das estruturas colocadas no palco, e, subjugadas, se confundem num mesmo corpo, num mesmo pequeno espaço onde vociferam, num mesmo esgar, palavras de dor e agonia. Ali somos nós. Mergulhados num sofrimento comum,oprimidos pelo sistema, sem ninguém que nos salve, sem rosto a ser distinguido numa massa amorfa. A música, criteriosa, certeira, intensa, afunila o sentimento de comunhão. E aí estamos no inferno com duas dezenas de almas errantes.
O segundo momento, próximo do final, em que parecemos transitar para outro plano. Como se o purgatório já esperasse aqueles seres, tão humanos quanto difusos. As personagens repousam nas plataformas, com roupa de veraneio, biquínis, fatos de banho, calções, com alguma brandura e serenidade, até que retornam à errância.
Por vezes, o texto parece desaparecer no embate duro com o fortíssimo conteúdo pictórico das cenas. Por vezes, os atores não nos impedem de fugir do inferno… Mas, repito, quem quer habitar a dor infinita? Quem nos pode raptar o pensamento e condená-lo eternamente? E esta também é a interpelação que o espetáculo nos deixa e fica guardada, nas entranhas, até reconquistarmos a liberdade depois do “inferno”, o inferno de Dante ou o nosso…
Até 4 de Junho no TNDM II – Lisboa
15 a 18 de Junho no Teatro Nacional São João – Porto
24 de Junho no Convento S. Francisco em Coimbra
Texto de Joana Neto.
Joana Neto, por defeito profissional, escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Filipe Sousa
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