O que mais impressiona neste A fera na selva é a autonomia do texto. Não é de somenos destacá-lo, quando há itinerância linguística: a origem é The beast in the jungle, novela de Henry James, de início do século XX, a versão dramatúrgica é de Marguerite Duras, já na década de 1980, e a versão a que assistimos é a tradução portuguesa do texto francês por João Paulo Esteves da Silva. O resultado é brilhante, independentemente da sua transposição para o palco através de Filipe Duarte (tão comedido como o papel pedia) e de Margarida Marinho (tão estonteante como dela esperávamos).
Duarte encarna John Marcher, intranquilo na expectativa de que uma catástrofe aconteça na sua vida, a tal fera à espreita na selva, mas cuja presença nunca se concretiza. O medo e a paralisia impedem-no de percorrer os passos normais da vida de um homem: não tem qualquer relação amorosa. Margarida Marinho representa Catherine Bertram, senhora que reencontra John numa festa e o relembra de que este lhe havia contado dez anos antes esse segredo que o acompanha. Catherine é, portanto, a presença que põe a descoberto o medo inconfessável de John, e é aquele reencontro fortuito e a partilha de uma condição tão pessoal de John que faz com que entre os dois se estabeleça uma relação de interdependência a partir dali, até ao momento em que um deles sucumbe. Sem que a fera se revele.
Aquilo que se nos dá a conhecer no espetáculo é o texto durasiano pejado de não-ditos, sugestões, intromissões, descrevendo uma estranha forma de vida através de pequenos retratos de conversas, elegantemente encadeados como pequenos atos em que a sala de estar que é cenário é lugar de convívio das duas figuras, das nossas, e dos espetros que compõem os quadros pendurados na sala do lado oposto ao nosso. A opção do encenador de colocar o público na atmosfera intimista, levando-o para o palco, é eficiente, tal é a intensidade do texto. Esta beneficia da proximidade do público com os atores e com a incomodidade aflitiva que se instala no ambiente, pontuada com certeiros interregnos para mudança de cenário, de guarda-roupa, de tempo.
No folheto desta coprodução CCB, Culturproject e Teatro Municipal do Porto confirmamos uma suspeição que nos ocorre durante o espetáculo: a base do texto final de Marguerite Duras é uma primeira tradução em colaboração com James Lord nos anos 1960. O texto demonstra de forma perfeita como a latência do pós-guerra (como lhe chamou em obra recente o filósofo Hans Ulrich Gumbrecht) é um espírito que conseguimos resgatar e compreender hoje em dia, da mesma forma que James em 1903 antecipa um clima de catástrofe. O medo de uma fera à espreita é a analogia perfeita para uma sociedade ansiosa e descrente daquilo que já conseguiu e que julga ser insuficiente ou um equívoco. Não sabemos se foi nisso que pensou Miguel Loureiro ao aceder ao convite do CCB para encenar este texto agora, nem isso interessa. O medo é, como em outros tempos, latente. A fera na selva, não contando uma história, é o medo em pequenas frases. E isso chega-nos.
Por defeito profissional, Luís Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Vitorino Coragem
Mais crítica de Teatro AQUI