home Antologia, LITERATURA A Forma das Ruínas – Juan Gabriel Vázquez (Alfaguara, 2017)

A Forma das Ruínas – Juan Gabriel Vázquez (Alfaguara, 2017)

“Toda a história é história contemporânea” escreveu notoriamente o historiador italiano do século XIX Benedetto Croce, querendo afirmar que, sem qualquer margem de dúvida, toda a história é vista a partir dos olhos do presente. Para Benedetto Croce, o historiador reedita o passado de forma objectiva, sendo a sua função o inquérito e o levantamento científico de dados desconhecidos. Por outro lado, a ficção histórica trata de questões de memória subjectiva que nos afectam colectivamente e pessoalmente, e relatam o seu impacto na vida contemporânea. As Formas das Ruínas é o novo romance de ficção histórica de Juan Gabriel Vázquez, uma contemplação poderosa de como a história recente colombiana influencia e transfigura, não só o mundo colectivo, mas o mundo familiar e subterrâneo de todos os colombianos. Para Vázquez, o testemunhar de eventos históricos por um romancista, exige-lhe necessariamente uma tomada de responsabilidade individual, que é, ao mesmo tempo, uma chamada para reflexão e uma convocação para a acção criativa:

“Quando temos uma disputa com os outros, fazemos retórica dizia Yeats, quando temos uma disputa connosco mesmos, fazemos poesia”. E o que acontece quando as duas disputas se dão ao mesmo tempo, quando lutar com o mundo é um reflexo ou uma transfiguração do confronto subterrâneo mas constante que mantemos connosco mesmos? Então escrevemos um livro como que estou agora a escrever, e confiamos cegamente que o livro venha a significar algo para mais além” (página 500).

Juan Gabriel Vázquez nasceu na cidade de Bogotá, Colômbia, em 1973, e depois de estudos universitários na sua cidade natal, mudou-se para Paris, para continuar os seus estudos na Sorbonne. Passou a maioria da década de noventa do século passado a viver na Europa, na altura em que os cartéis de droga causavam o caos no seu país. Depois de vários anos a viver em várias cidades Europeias, regressou à Colômbia, onde reside até hoje, e tornou-se um romancista célebre e premiado. Nas suas primeiras obras ficcionais, Vázquez escolheu não descer ao palco perturbador do seu pais natal, preferindo desenrolar as suas histórias nos cenários Europeus onde viveu. As suas obras seguintes têm, por outro lado, sempre como objecto preferencial a Colômbia e sua problemática história recente. O seu grande sucesso foi o romance O Barulho das Coisas ao Cair (Alfaguara, 2012), que narrava uma visão alternativa sobre a realidade do narcotráfico colombiano, sendo o romance seguinte, As Reputações (Alfaguara, 2015) uma obra que trata o tema da memória histórica e as ligações obscuras de um caricaturista colombiano à vida política do seu país.
A Forma das Ruínas é o livro mais recente de Juan Gabriel Vázquez, traduzido para português por Vasco Gato e publicado pela editora Alfaguara. Esta obra nasceu depois de um período de investigação efectuado por Vázquez, sobre o assassinato de dois conhecidos políticos colombianos do século XX, e sobre o impacto desses eventos traumáticos na vida e no inconsciente colectivo colombiano.
O enredo deste romance inicia-se com a detenção de Carlos Carballo, uma personagem algo perturbada, depois de este tentar roubar de um museu o fato de Jorge Eliécer Gaitán, líder político colombiano assassinado em 1948 durante a guerra contra o narcotráfico. Carlos Carballo é uma pessoa excêntrica, que passa a vida a investigar todos os detalhes de alguns dos eventos políticos mais importantes da história colombiana do século XX, e tenta encontrar neles a verdade escondida por detrás das narrativas históricas oficiais. Carballo acredita encontrar aspectos de misteriosa semelhança e de improvável relação entre os assassinatos dos políticos colombianos Jorge Eliécer Gaitán e Rafael Uribe. Depois de conhecer Carballo, Juan Gabriel Vázquez, o próprio romancista tornada personagem principal deste romance, sente-se ele próprio tentado a desvendar os segredos mais obscuros do passado colombiano e a seguir as teorias de conspiração sugeridas por Carballo.
A Forma das Ruínas tenta indagar como, através da criação de teorias de conspiração, as personagens tentam lidar com o peso da História. Mas não se trata aqui de uma qualquer espécie de escapismo, pelo contrário, as personagens acabam ser expostas ao carácter obsessivo das próprias teorias de conspiração e criam essas teorias depois de testemunhar eventos históricos traumáticos. Em particular, a personagem Vázquez começa por seguir cepticamente as teorias de conspiração que Carballo lhe expõe, mas acaba por ser puxado e irremediavelmente atraído pelo fluxo conspirativo, que acaba por ter um impacto devastador na sua vida privada. O jovem escritor acaba por esquecer parcialmente a sua mulher e os problemas de saúde da sua filha recém-nascida. O tom frenético da conspiração mencionada por Carballo, torna o Vázquez ficcional uma testemunha involuntária de vários acontecimentos históricos colombianos. Citando Jorge Luís Borges, Vázquez menciona neste romance que “as datas mais importantes da História não seriam talvez as que apareceriam nos livros, mas outras, ocultas ou privadas”. (página 223).

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Vázquez quer assim retratar como estes episódios ocultos influenciam a vida colectiva colombiana, por vezes de forma cómica e momentânea, mas na grande maioria das vezes, tendo um efeito profundamente dramático na vida privada e familiar. Estas influências são reveladas por episódios cíclicos e pela exploração paralela de temas fragmentários, resultados derradeiros da história de violência colombiana. Neste romance, Vázquez menciona e adopta parcialmente o registo estilístico de W.G. Sebald, ao incluir fotografias associadas aos eventos narrados. No entanto, ao contrário do teor discreto, contemplativo e especulativo do escritor alemão, Vázquez apresenta tom muito mais pungente, imediato e directo. Isto observa-se nomeadamente na apresentação da fotografia da autopsia de Gaitán, e da fotografia do crânio de Uribe, artefactos e depoimentos humanos primários da história da violência colombiana:

“O crânio, limpo e resplandecente à luz branca que chovia do tecto, estava partido: havia um pedaço de osso solto; uma tira de fita adesiva, colada por dentro do crânio, segurava-o no sítio. Para lá do osso solto, a minha atenção fixou-se imediato nas três letras escuras que pareciam pirogravadas sobre o frontal. R.U.U. (Rafael Uribe Uribe)”(página 442).

A leitura deste romance permite uma exploração de uma outra realidade, não a realidade do que realmente aconteceu, mas uma especulação sobre o reino da possibilidade ficcional história, um lugar para além da história e do jornalismo. Para Vázquez, existe uma interpretação constante do passado, e o eterno retorno do passado faz parte da interpretação continua e subjectiva da História. Para o próprio Vázquez, o testemunhar na sua juventude da violência do narcotráfico só assume as suas consequências plenas muitos anos depois:

“O mundo dos vintes anos, para mim que nasci em 1973, era este: o dos bombas entre Janeiro e Abril, o da morte de Pablo Escobar, que caiu baleado num telhado de Medellín. Porém, não percebi que significado poderia isso ter para minha vida.” (página 230)

A descrição obsessiva dos detalhes conspirativos da primeira parte do romance, parecem bloquear o desfecho do enredo do romance e negar qualquer hipótese redentora ao romance. Neste romance, longe de termos uma descrição realista de factos históricos, observa-se um mundo em que se tudo é transfigurado: o paranóico é o real, e o real é o paranóico, ao qual se associa uma noção de aleatoriedade da história:

Há duas maneiras de ver ou contemplar aquilo que chamamos história: uma é a visão acidental, segundo a qual a história é o produto fortuito de uma cadeia infinita de actos irracionais, contingências imprevisíveis e factos aleatórios (a vida como um caos sem remissão que os seres humanos tentam desesperadamente arrumar); e a outra é a visão conspirativa, um cenário de sombras e mãos invisíveis e olhos que espiam e vozes que sussurram nas esquinas, um teatro no qual tudo acontece por um motivo, os acidentes não existem e muito menos as coincidências, e onde as causas do que acontecem são silenciadas por razões que ninguém nunca conhece” (páginas 560).

Como se revela ao longo do romance, as teorias de conspiração são formas de as personagens reagirem depois testemunharem eventos históricos traumáticos que nunca são resolvidos nem completamente explicados. A Forma das Ruínas contempla como o uso das teorias de conspiração por vezes se torna numa forma de a sociedade se defender das mentiras da história oficial, e de ponderar como forças obscuras a continuam a influenciar até hoje.
No entanto, ao mesmo tempo que o tom fortemente subjectivo desta obra pode sugerir que nenhuma das narrativas históricas pode ser inteiramente confiada, as personagens de Uribe e Gaitán são retratadas como figuras históricas, cuja “nobreza” espiritual nunca é questionada, assumindo um carácter quase messiânico. Esta falta de qualquer espécie de desconstrução destas figuras políticas acaba por criar uma certa falta de balanço no romance, já que contrasta com a fragmentação de ideologias e o caleidoscópio de referências e perspectivas presentes no resto do romance. Por momentos, o próprio narrador deixa-se perder também nas teias de referências deste livro, o que acaba por enfraquecer temporariamente o cento de gravidade dramático do romance. Nomeadamente, a descrição paralela e logo abandonada das obras e da vida da escritora bósnia Senka Marnikovic, uma escritora que, tal como Vázquez, partilha enredos de violência da sua terra mas, como Vázquez, acaba por confessar passado algumas páginas: “essas histórias não podem fazer parte deste livro” (página 658).
Porém, ao contrário de boa parte da prosa contemporânea, os livros de Vázquez têm o mérito de não possuir, nem por momentos, uma característica evasiva ou fantasiosa, e a sua escrita é uma escrita comprometida e cáustica, que assume responsabilidades. Neste romance Vázquez menciona que o trabalho ficcional é o trabalho do pesar, um pesar que envolve o horror no poço profundo e malcheiroso que é a história colombiana recente:

Não sei quando é que comecei a aperceber-me de que o passado do meu país era para mim incompreensível e obscuro, um verdadeiro território de trevas, nem sou capaz se recordar o momento preciso em que tudo aquilo que eu julgara tão confiável e previsível- o lugar onde cresci, cuja língua falo….. começou a transformar-se num lugar de sombras do qual saltavam criaturas horríveis assim que nos descuidávamos” (páginas 499).

Este romance longo e poderoso, é uma demonstração plena da capacidade da ficção de explorar as obsessões históricas de um país. Ao longo deste romance, sem termos uma resolução final para o enredo, nem uma explicação cabal sobre a verdade ou falsidade das teorias de conspiração apresentadas, verificamos como a precaridade da vida familiar se constrói sobre crimes históricos passados, que se perpetuam pelo presente e pelas gerações futuras. Estas são as palavras conclusivas deste romance, palavras perturbadas e funestas, o final de um apelo épico para a contemplação das ruínas da história que permeiam a vida privada e a vida oculta de todos os colombianos:
“ As relíquias são isso também, pensei diante do televisor, uma forma de comunicarmos com os nossos mortos, e nesse momento apercebi-me de que a minha mulher adormecera ao meu lado e que não poderia comentar o assunto com ela. E então levantei-me da cama e fui ao quarto das minhas filhas, que também dormiam, e fechei a porta e sentei-me na cadeira verde adornada de pássaros e assim fiquei, na escuridão daquele quarto pacífico, a observar com inveja o sossego dos seus corpos compridos, deixando-me surpreender pelo muito que tinham mudado desde o seu nascimento difícil, brincando a ouvir a sua respiração calada entre os barulhos da cidade: essa cidade que começava do outro lado da janela e que pode ser tão cruel neste país doente de ódio, essa cidade e esse país cujo passado as minhas filhas herdariam tal como eu o herdei: com a sua sensatez e as suas desmesura, os seus acertos e os seus erros, a sua inocência e os seus crimes”. (página 571).

Por defeito profissional, Jorge Ferreirinha escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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