home LP, MÚSICA A garota não – Teatro Municipal Joaquim Benite, 11/03/2023

A garota não – Teatro Municipal Joaquim Benite, 11/03/2023

Nota: sinto uma perturbação obsessiva-auditiva com a garota não desde maio de 2022. Há quem diga que estou louco. Ela sabe desta minha condição e ainda assim insiste em cantar. Cada vez mais. Não se faz Cátia. Depois de a cada dia ouvir a sua voz dilacerante, depois de comprar o cd com capa bordada à mão como nos velhos tempos (após uma conversa com o Changuito na Poesia Incompleta), depois de ler, reler e revirar os seus versos e rimas, decidi não adiar mais o prazer. Sentar-me à sua frente e ouvi-la sentada num banco alto com uma guitarra ao colo. E, tal como defende o MEC, se dissesse apenas Não há palavras!, seria um tremendo acto de egoísmo e preguiça.
O espanto inicial que me assaltou com a garota explica-se brevemente: antes de partir de férias para sul, fui ao carro deixar as malas e os brinquedos do meu filho. Ao ligar o carro escangalhei-me todo, como um castelo de legos a desabar, ao ouvir aquela melancolia ao longe, no sítio certo como o coração e a cabeça, assaltado por uma reunião de euforias plácidas. É folk português? Electrónica lusófona? Cantautora de hip-hop? A filha bastarda de Zeca?, um conjunto de sons estranhamente vizinhos. As notas a apunhalar-me, insistiria Walser. Guardadas sabe-se lá onde, talvez dentro de uma bolsa de memórias, prontas a encontrar-me ali. Inerte, espantado. Arrepiado pela possibilidade do que poderá significar uma voz tão sincera e funda como alguém que ouvimos desde que nascemos apesar de, afinal, ser a primeira vez. As cordas eléctricas e ciganas, que acompanham a sua voz, empurram para a frente, talvez um cheiro a progresso. Dentro do carro, sozinho, queixo colado ao pescoço, apenas os olhos se moviam. Respiro. E eu seria capaz de jurar que já ouvi tudo isto, mas já nem sei.
Agora, a garota não está em palco e canta com palavras simples: amor paz saúde habitação. Tal como os grandes da mpb (a partir da qual ganhou nome artístico), a voz clara serve para assombrar. Entre músicas e aplausos (sempre no limite de serem de pé, sempre antes e depois de cada música), solta sátira e ironia sem dramas nem tragédia e pede um brinde à comédia (humana). Conta histórias leves, explica processos e faz-nos rir e depois volta à séria para a música. Alguma vez saiu dela? Outro espanto revolve. Agora, no palco do Teatro Joaquim Benite, é dia de casamento. Entre o potente o belo. Entre a estética e a ética. Entre março e abril. 11 de março casa-se com o bairro 2 de abril. 11 de março casa-se com o 25 de Abril.
Houve cravos, lágrimas, abraços e em coro entoou-se. Foi bonita a festa, pá, diria o Chico se ali estivesse. Festa sem folclore, gestos contidos e precisos, melodia gentil e a mão de uma mulher poderosa, confiante como recorte harmónico. Por instantes, tive de parar os lábios, que acompanhavam num sussurro as suas músicas, para notar que uma estranha voz colectiva se apoderava daquela sala. Talvez fosse imprecisão. Talvez não. Há quem diga que estou louco, mas acho que a garota conseguiu transformar a voz singular em plural.
Estava na hora de se cantar os vencedores, o Sérgio, o Fausto, o Eugénio, a Francisca e o Zé Mário. E não podiam esquecer-se as vencidas, porque ali, em Almada, na sala onde se casou março com Abril, ninguém podia ficar para trás, nem a Alda, a Maria, a Celestina ou alguma das outras 25 mulheres mortas em Portugal por violência doméstica durante o ano de 2022.
Em palco, um terceto rimando entre bateria, guitarra e voz. O que podíamos querer mais? A garota ao microfone como verso primeiro de uma revolução poética, de um prédio mais alto no qual se entra com estrofes de serenidade e ironia para construir uma vida justa para todes.
É oficial: a canção de intervenção reciclou-se e mergulha através dos olhos de uma “anarquista setubalense” (mais uma, não é, Slow J e Samina?) na mesma maré que nós: a desigualdade, a habitação, o populismo, a violência e a migração. Há dias ouvi um autor dizer: a obra engajada dá um passo atrás. Qual, ao certo?
A garota não é a prova que cantamos, escrevemos, pintamos aquilo que somos. A liberdade do ser encontra-se na arte. Orgulhosos do caminho que nos construiu, somos sobreviventes tatuados pela dor, e aí saber cair faz parte.
Ao final, olho à volta e a esperança traz sementes e searas, cheira a primavera. Volto ao lugar individual e oiço a mulher da minha vida sussurrar-me ao ouvido: “Este foi o concerto mais bonito da minha vida.” Da nossa vida. Tudo é definitivo, repetitivo e harmonioso como numa balada simples de amor. Uma promessa de noites infinitas. Sim, o amor é bom e vamos desembrulhá-lo toda a noite, Vani. A garota parece fazer tudo bem, até as asas para nos fazer voar.

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