A carreira literária de Fernanda Torres – actriz, apresentadora, guionista, com sucesso no teatro, cinema e televisão há mais de trinta anos – começou pelo Fim, título do seu primeiro livro, editado em 2013. Quatro anos depois, A Glória e o seu Cortejo de Horrores, editado em 2017 pela Companhia das Letras, veio dar continuidade a esse caminho, com uma farsa sobre o meio onde a própria nasceu e cresceu, com a televisão no seu epicentro.
A história é-nos contada, quase na sua totalidade, na primeira pessoa, como um diário escrito pelo protagonista, Mário Cardoso, actor carioca de meia-idade e ídolo caído das novelas que, consciente da sua decadência, tenta recuperar o brilho de outrora regressando ao início de tudo, ao teatro, com a encenação de uma versão de “Rei Lear”, tragédia shakesperiana de 1606.
Pela vida e olhos de Mário, percorremos a história recente do Brasil, que se entrelaça com a sua, com momentos marcantes que se sucedem. Da sua juventude no teatro político, retemos as preocupações pseudo-intelectuais de esquerda e as involuntariamente cómicas produções do teatro ambulante, que tentavam “cultivar” o povo: “Eu era um rapaz normal, morava com os pais, nunca arrumei a cama e havia impressionado os colegas com meus dotes artísticos, estava de bom tamanho para mim, mas tive receio de admitir a acomodação. Passei o ano enfronhado em improvisações sociais, fiz teatro de rua, do invisível, idolatrei Vianinha, Guarnieri, Boal; e li, sem entender, Marx, Lenin e Marcuse. As pretensões culturais do Campos eram tão arraigadas que ele tachava o Teatro de Arena de conservador e o Cinema Novo de cooptado. Em Outubro, nosso guia propôs uma colónia de férias no sertão nordestino. Teríamos dois meses de ensaio, passaríamos o Natal com a família e partiríamos rumo ao desconhecido. Alguns fecharam no acto, outros trocaram olhares tensos, mas ninguém teve peito de dizer que não ia. Cogitamos montar uma versão rural de “Eles não usam black tie, mas o Campos achou que sindicalismo não combinava com reforma agrária. Optamos por Brecht. Adaptaríamos as relações de domínio de O Senhor Puntilla e seu criado Matti para um canavial”). Do Verão de ’68, recorda a vida louca, com grandes doses de sexo e drogas, em que fez parte do elenco do musical icónico da contracultura hippie e revolução sexual daquela década, “Hair”, com Sónia Braga e Armando Bógus: “Quando dei por mim, estava nu, do lado do Jackson, numa distância respeitosa do traseiro do Bógus, mas lutando para roçar no da tigresa Sônia.”. Seguimos depois a sua incursão no Cinema Novo pelas mãos de um director megalómano, Bento Peixoto, e a tentativa deste em transpor para o grande ecrã “O Grande Sertão: Veredas”, o seu encontro com o teatro de Tchékov e Plínio Marcos: “O que veio depois foi um desses milagres raros, felicidade plena, livre de qualquer frustração. Um estado de graça que jamais voltou a se repetir na mesma voltagem e do qual guardo uma nostalgia sem fim. Meu Astrov tomou de assalto o teatro tupiniquim. Cinco meses depois daquele encontro, eu havia me transformado num deus da ribalta, sex symbol da contracultura, arquétipo do homem ideal.” e finalmente a glória como um dos actores mais famosos da época dourada da televisão brasileira.
O retrato assim traçado por Fernanda Torres, que nos chega pela voz de Cardoso, é cheio de ironia e sarcasmo. Através dele vamos compondo as alegrias e tristezas, as frustrações, a glória e o mundo de horrores presentes no título, a vida de Mário e de tantos outros como ele que, rendidos às leis do mercado e acima de qualquer ideal, embarcam num individualismo narcisista que lhes permite saltar de um universo ideológico a outro, sem dramas ou remorsos. A frase que compõe o título, da mãe da autora, Fernanda Montenegro, resume, de forma bastante ilustrativa e certeira, as dores e os deleites de quem vive da arte, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo.
Possuidora de um talento estético e visual apuradíssimo, a autora faz-nos ver, de facto, as cenas enquanto seguimos a história. A descrição da encenação de “Rei Lear” é das mais hilariantes que lemos em muito tempo. Gargalhámos alto com as desgraças de Mário Cardoso que, no início da demanda e ao contratar Stein para encenador (“que pretendia ser maior do que Shakespear”), não imaginou que, no final, entendesse verdadeiramente o significado de “tragédia shakesperiana”: “Foram as fraldas, as fraldas e a falsa cegueira, o nojo do galã com os fluidos do companheiro, os trovões do génio do director, a afonia, eu de quatro no cubículo de Copacabana, a azia dos frangos, a tara do bombeiro, a crítica arrasadora, o público estupefacto, a bilheteira às moscas, o shopping fervendo com a liquidação de Inverno, a consciência traiçoeira, a fragilidade da profissão. Minha atenção se concentrou na cortina de veludo puído, lembrei do quanto eu odiava a Regana canastra da Ivete Maria e lamentei o delírio idiota de estar à altura de Lear. Um senhor na primeira fila teve um ataque de tosse e a mulher abriu a bolsa para catar uma pastilha. O barulho do papel de bala se juntou ao dos espasmos do marido e alguém na plateia soltou um shhhh resmungão. Meu diafragma perdeu o tónus, o ar subiu pela faringe e terminou na boca, forçando a contracção dos lábios para cima. Tentei disfarçar o riso.”
Depois de fracassar o regresso aos palcos, Mário Cardoso tenta remediar os erros cometidos e, para financiar a peça, aceita um papel numa novela bíblica (“Se estivesse vivo, o que pensaria Jorge Cardoso do filho, agora, correndo numa planície de Jacarepaguá, arrastando a barba postiça, o turbante, duas filhas e a mulher fictícia, todas vestidas de Jeannie é um Génio? Ainda teria orgulho de mim? Não, acho que não.”), e um contrato publicitário a papel higiénico na pele de Lear, sentado numa latrina, metáfora que se explica por si.
A par da ascensão e queda profissional de Cardoso, vamos assistindo igualmente aos seus sucessos e infortúnios pessoais: o divórcio, a ruína financeira, a perda em vida da sua mãe, Maria Amelia, o seu último pilar.
Desgostou-nos que, ao longo da primeira parte do livro, narrada pela intensa e frenética voz de Mário, a história se fosse fechando em si, tornando difícil ao leitor seguir o desfilar de personagens que vão preenchendo a existência complexa do protagonista. Acabamos por nos sentir como convidados de um jantar em que todos os outros convivas são amigos de longa data e as conversas fluem numa espécie de dialecto próprio e fechado, em torno de pessoas e assuntos que nos são estranhos, que vamos tentando acompanhar mas que inevitavelmente dispersam a nossa atenção.
Já a segunda parte, mais curta, é um regresso à clareza inicial, numa equilibrada e ponderada narrativa na terceira pessoa. Essa nova voz dá-nos conta de um novo Mário que, da queda máxima e temporária insanidade, reaparece qual fénix renascida, redescobrindo, no mais improvável dos cenários e de forma quase ingénua, a pureza dos ideais. No final, num twist inesperado, quando toda a esperança estava perdida, Fernanda consegue surpreender-nos ao fazer valer a velha máxima: “The show must go on!”.
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