home Didascálias, TEATRO A Golpada – Teatro Aberto, 28/6/2019

A Golpada – Teatro Aberto, 28/6/2019

A capacidade de transformar um espaço limitado numa ampla e mágica extensão, onde acontecem cidades, histórias, prédios, lojas e relações de vizinhança, é magistral nesta A Golpada levada à cena por João Lourenço.
O piso irregular, a lembrar um parque infantil, confere a toda a peça uma dinâmica única, permitindo ao elenco e em particular aos gémeos Maria e Jesus Maria, extravasarem correrias e sonhos de uma forma jovial, bem adequada à idade das personagens. Os gémeos, tão realistas quanto sonhadores, de proveniência modesta e quotidiano austero, sonham enriquecer graças a um golpe, uma «golpada» que consiste num roubo a uma joelharia. Na verdade, eles sonham muito para lá da riqueza. Sonham a liberdade que o dinheiro lhes permitirá e a satisfação de caprichos algo infantis. Desejam viver a vida de forma plena, cortando grilhões com o passado que o espectador vai conhecendo ao longo da peça num discurso retrospectivo.
Os gémeos são bem mais do que dois miúdos em busca de aventura, ou fortuna: são o seu passado, uma mãe abandonada pelo companheiro espanhol que, entre excessos de álcool e doença disfarçada, tenta educar os filhos e sobreviver ao destino. Dela restou uma peruca com que disfarçou a calvície e as memórias que os filhos agora recordam entre a graça e a dor. Eles são ainda os que questionam o sentido da vida e a inevitabilidade da morte e se elevam pelo sonho da rotineira passagem dos dias. Maria cobra ao irmão a promessa pueril de uma vida fantástica.
Fantásticas também as outras personagens: Madame Bonafide, meio vidente, meio homem, meio mulher, meio vizinha, meio sedutora, meio repugnante com o seu cheiro a afastar quaisquer curiosidades e Otto-Porno, o realizador de filmes pornográficos que se percebe ser, curiosamente, o reduto de algo que se assemelha a família e a carinho.
Cristóvão Campos está impecável no papel de Madame Bonafide, conferindo-lhe um equilíbrio notável entre a elegância e o absurdo, entre os saltos altos e o bigode, entre o real e o fantástico, entre o dom da vidência e o da amizade, assim com Tomás Alves que, num papel menos evidente, encarna Otto-Porno, a personagem de quem se gosta pela dimensão humana, que se revela pela doença e pelos filmes de autor que deixa como herança aos gémeos. O joelheiro Milagre, interpretado por Rui Melo, encanta pela postura penetrante e pela voz bem timbrada e ainda a presença de Giovanni Barbieri e Mariana Rosa juntos, transformam esta peça de teatro num momento versátil e musical.
A linguagem mistura de forma arrojada o discurso poético com o linguajar brejeiro e actual dos jovens, a um tempo elevando o espectador aos pensamentos mais profundos sobre a razão da existência e mantendo a coerência na construção das duas personagens principais: Maria e Jesus Maria, às quais Ana Guiomar e Carlos Malvarez dão vida no palco, numa peça que deles muito exige e a que ambos respondem na perfeição.
No final, mais um detalhe memorável: o espectador sem saber se A Golpada foi bem sucedida, enquanto fita um balouço vermelho, símbolo da fantasia e do decurso do tempo.
Por fim, e uma vez mais, referência a João Lourenço, pelo extraordinário cenário que nos conduz entre cenas e surpresas de forma soberba.

Entrevista a João Lourenço sobre a peça AQUI

A Golpada está em cena até 28 de Julho na Sala Vermelha do Teatro Aberto.

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