Na abertura de A História Contemplativa, adverte José Mattoso para «o seu conteúdo visivelmente desconexo» (p.7). O que não impede o decano dos historiadores portugueses de pôr em evidência o seu próprio «empenhamento» (id.) na realização dos ensaios, ou do ensaio, que compõe(m) este volume. Nesse sentido, A História Contemplativa – e o seu subtítulo («Ensaio») o indica sem dúvida –, sem deixar de ser uma recolha de artigos, ensaios e palestras, é um ensaio uno e coeso porque, tanto as suas propostas, quanto a globalidade das suas abordagens, convergem para um ponto bem definido e preciso.
Nesse sentido, é sobremaneira interessante reparar no que significa «contemplativo» perante a ideia de História perfilhada por José Mattoso. Esta não pressupõe um posicionamento de inactividade, de molde passivo, ou alheio ao mundo. As suas palavras a esse respeito são esclarecedoras: «A minha visão da História humana, da História-vivida é contemplativa. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo. Um olhar que capta as relações do pequeno com o grande, do singular com o plural, do diferente com o semelhante, do mesmo com o contrário. Um olhar que coloca as coisas na sua ordem, que permite descobrir os géneros e as espécies, que classifica os conjuntos e lhes atribui qualidades.»
Trata-se, portanto, de uma visão da História fundamentada em pressupostos situados no pólo oposto ao do esquecimento do mundo, ou a um qualquer conceito de contemplação como ausência de actividade. O historiador explica-o como só ele poderia fazer:
«Sempre me interessou a História. A História, isto é, o passado da Humanidade. Não o passado do ponto de vista metafísico, mas o passado concreto, como narrativa do que fizeram os homens e mulheres que, durante séculos e milénios, viveram antes de mim. A História, como base do conhecimento da condição humana ou, até certo ponto, como “mestra da vida”, quando se invocam feitos do passado para orientar resoluções do presente.» (p.10)
Neste admirável recolha de dispersos, a mestria de José Mattoso pratica a História do modo admirável que a sua obra tornou consagrado. Esse seu magistério não o impede, no entanto, de reflectir sobre a disciplina, na sua prática investigativa e científica – «Ao escrever História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu.» (p.19).
Trata-se de momentos, frequentes e vigorosos, que permitem ao autor expender o fruto das suas meditações, as quais amplamente transcendem os circunstancialismos e as limitações do ofício do historiador:
«Tudo o que se situa no tempo evolui. O tempo da História-vivida é fluido.» (p.27). É nesse sentido que o seu tratamento dos períodos históricos estudados se deixa atravessar por formulações que não configuram um modo divagante, mas constituem esclarecimentos apropositados e certeiros – «os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar, porque a cada um deles segue-se outro momento» (id.).
Os trabalhos recolhidos em A História Contemplativa sabem aliar elementos que, na verdade, seria inviável tomar em separado, como a geografia e os fenómenos sociais e históricos:
«as condições de vida na Península Ibérica eram muito diferentes conforme as regiões. Essa diferença existia já no fim do Império Romano. A norte da cordilheira central, nas regiões onde depois vieram a constituir-se a Galiza, o País Basco e os reinos de Leão e Astúrias a romanização concentrou-se nas cidades mas mal tocou a população autóctone. A sul, pelo contrário, a Lusitânia, a Bética e a Terraconense assimilaram profundamente a cultura romana. As invasões dos povos germânicos a partir do século V devem ter afectado sobretudo as cidades e outras concentrações urbanas, onde a pilhagem era mais lucrativa.» (p.174)
A presença deste tipo de informações, assim entrelaçadas, torna os escritos de Mattoso uma realidade dinâmica e abrangente, perante a qual o leitor não tem a sensação de uma limitação metodológica. Na sua prática, o historiador oscila sabiamente entre a exposição demorada e abundante em pormenores – «Tendo em conta as generosas doações dos reis Ordonho II, Ramiro II e Sancho I, e as confirmações dos mesmos, e de Ordonho III, Ramiro III e Bermudo II, verifica-se que todos os reis de Leão desde Ordonho II até Bermudo II, excepto Afonso IV, visitaram e favoreceram o mosteiro [de Lorvão]» (p.108) – e fórmulas de uma concisão admirável – «[a Batalha de] São Mamede podia não ter sido senão uma escaramuça feudal. Teve efeitos bem maiores porque o poder que, nesse momento, Afonso Henriques tomou em suas mães se inscreveu rapidamente num contexto internacional. Vejamos primeiro o contexto polarizado no Oriente, ou melhor em Jerusalém.» (p.129) Contudo, antes de chegar à pormenorização e ao desenvolvimento, o historiador prepara o terreno, recuando no tempo e na minúcia – «o território que hoje é Portugal pertenceu ao reino de Leão até se tornar independente» (p.87)
Paralelamente ao seu labor em torno da descrição e comentário dos fenómenos históricos, em si, e nas suas repercussões, a recolha de José Mattoso engloba ainda o olhar retrospectivo do autor para com a obra de outros historiadores, quer na generalidade – «Desde os anos 60, a historiografia acrca das chamadas “invasões dos bárbaros” procurou relativizar o seu aspecto catastrófico, e sublinhar a lentidão do declínio da civilização romana, ou, até, demonstrar uma certa revitalização cultural e política» (p.89) –, quer no particular, como sucede no ensaio «Perspectiva de um medievalista», onde Mattoso recorda o trabalho de insignes historiadores como A. H. de Oliveira Marques, Virgínia Rau, ou Vitorino Magalhães Godinho.
A História Contemplativa é uma recolha de dispersos, uma reunião de textos originários de fontes díspares, mas que, todos eles, respondem pelo mesmo desejo de rigor e fundamentação. Estes escritos de José Mattoso comprovam a vitalidade e constante premência da acção e do trabalho historiográfico do seu autor.
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