Ler A Little Life é assumir um compromisso: não abandonar o livro nem as suas personagens a meio, mesmo que sejam exigidas pausas para recuperar o fôlego – ou ligar a um amigo. O compromisso torna-se por vezes difícil de cumprir, quer pela extensão do livro, quer pelo efeito de auto-flagelo proporcionado pelo avanço na ação. A edição de capa mole editada pela Picador tem um pouco mais de 700 páginas, escritas de forma clara, direta e concisa, por vezes até, quando se tratam de descrições de ações violentas – e há muitas – de forma apática e distante e nunca sentimentalista, com o castigo do corpo nas suas múltiplas formas como pano de fundo.
“Não choro desde 1995 e não planeio começar agora”, disse Hanya Yanagihara ao The Guardian, certamente uma hipérbole literária que não será totalmente desadequada: para se escrever (e ler) A Little Life é necessário uma pele dura (nenhuma outra expressão conseguirá evocar a nossa impermeabilidade à desgraça do que a inglesa “thick skin”). As críticas ao livro são polarizadoras mas a experiência de leitura parece ser comum a quem o lê (com espaços online dedicados à sua leitura e discussão coletiva): ou este é abandonado logo no início ou é lido com um apetite voraz, e quase masoquista, à medida que estes quatro homens, de quem também o/a leitor/a se aproxima, sofrem, se apaixonam, sofrem mais e envelhecem.
A ação gira em torno de Jude, uma figura trágica e com algo semelhante a um Cristo, cujo passado de abuso, escondido dos amigos mais próximos, Malcolm, J.B. e Willem, é revelado gradualmente ao longo do livro. O corpo de Jude serve com uma espécie de cartografia para a sua história, onde podem ser lidas as marcas, físicas e psicológicas, dos abusos sexuais e físicos sofridos durante a infância, e que o deixaram com dificuldades de locomoção, assim como a materialização física da dor, através da auto-mutilação e agressões diárias que Jude exerce sobre si mesmo. A Little Life é possivelmente um dos melhores retratos das consequências do abuso sexual, físico e verbal e um dos poucos em que a vítima é um homem, tornando-se assim também num retrato muito complexo e doloroso da incapacidade de Jude em aceitar o amor que lhe é demonstrado por amigos e família adotiva. No entanto, o trauma de Jude acompanha-o sempre, tornando-o num corpo quase sem vida, apavorado de qualquer contacto físico, o que o impossibilita de ter qualquer relação íntima, vencido pela apatia e um sentimento desolador de incapacidade que tenta contrariar ao infligir dor a si mesmo, para desespero de quem o rodeia. É de salientar ainda a capa da edição publicada nos Estados Unidos, em que se encontra uma fotografia de Peter Hujar intitulada “Orgasmic Man” e é nesta imagem ambivalente que uma das premissas do livro se materializa: não é óbvio se o homem orgásmico e a sua face contorcida revelam prazer ou dor ou se estes dois se sobrepõem. A Little Life explora, para além da fluidez da orientação sexual e a homossexualidade de forma subtil e delicada, a recuperação e reclamação de uma vida sexual saudável depois da violação e do trauma sexual e a difícil tarefa de reconhecer a diferença entre relações saudáveis e abusivas. Jude, que apenas conhece o sexo como forma de abuso desde terna idade, não tem a certeza sequer da sua orientação sexual, nem retira nenhum tipo de prazer do sexo, mesmo quando este é praticado com pessoas que o amam, sendo este apenas uma lembrança traumática sem o alívio que processo de cicatrização lhe poderia proporcionar.
No Brasil o livro foi traduzido (e que tarefa hercúlea a de traduzir este livro) com o título Uma Vida Pequena. No entanto, outra tradução ocorre; num determinado ponto do livro, é dito a Jude que tenha “alguma vida”, algo inconcebível para o que parece ser uma luta diária que deixa adivinhar que o desfecho inevitável para a pequena vida de Jude será o suicídio, último escape para o que é um caminho tortuoso marcado pelo ódio por si mesmo, a aversão ao corpo e uma força auto-destrutiva indestrutível. Parece inacreditável que Jude ainda tenha alguma vida, que um corpo humano, falível e feito de sangue e osso, tenha sobrevivido a tanta tortura e dor. Há também, como contraponto a tanta crueldade, momentos de ternura em A Little Life; Jude é amado ao longo da sua recuperação e apoiado sempre que uma recaída acontece, apesar da relutância em se expor ao contacto e amor dos outros, com a desconfiança natural de quem apenas conhece o abuso. Se o enfoque do livro recai no abuso e na maldade humana, quer praticada por outros, quer auto-infligida, também se poderá escrever dele que é um retrato de amizade incondicional, numa era marcada pelo que parece ser um constante estado de ansiedade, isolamento e indiferença.
“You won’t understand what I mean now, but someday you will: the only trick of friendship, I think, is to find people who are better than you are—not smarter, not cooler, but kinder, and more generous, and more forgiving—and then to appreciate them for what they can teach you, and to try to listen to them when they tell you something about yourself, no matter how bad—or good—it might be, and to trust them, which is the hardest thing of all. But the best, as well.”
De vez em quando, ainda me lembro de Jude. A Little Life é tão soberbo como negro e lê-lo exige, ao mesmo tempo, vulnerabilidade e resistência. A forma incisiva como o romance é escrito é rara e a dissecação que é feita do corpo e mente de Jude é de uma aspereza reservada às pouquíssimas obras que arriscam abordar tais temáticas de forma tão franca. Ao longo do livro, o corpo de Jude vai sendo marcado pela lâmina, pelo fogo, pelos corpos de outros que o invadem sem permissão, em descrições que pontuam o livro e lhe conferem um certo ritmo e cadência, marcados pela gradual deformação física e mental de Jude, numa aniquilação do corpo como sintoma do mal-estar psíquico. Olhar o sofrimento dos outros e observar calamidades a acontecer longe de nós pode bem ser a experiência moderna por excelência, escreveu Sontag, e em A Little Life, é o sofrimento de Jude que nos força a trocar qualquer réstia de pena por possíveis vítimas da natureza cruel humana e transformá-la em empatia e regeneração.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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