É inevitável que comece por retractar-me: aquando da crítica de Ensina-me a voar sobre os telhados, falei sobre a sua excessiva masculinização, em como o autor não tinha emprestado suficiente densidade às personagens femininas, em como eram voláteis, meros atavios, descartáveis. A vingança serve-se fria! A mulher que corre atrás do vento é uma ode ao feminino, um trilho sagaz sobre as diversidades da mulher, um relato sóbrio, sensível, perspicaz e revelador do que une os sexos e, inevitavelmente, do que os separa.
Diz Beatriz – a personagem que nos é primeiramente apresentada – sob a pena de João Tordo: «Os sem-abrigo, descobriu ela, têm um cheiro característico, como uma manada de bois que passou demasiado tempo ao relento; têm os olhos vazios e curiosos da gente que anda à procura de uma alma há muito perdida.». No equilíbrio subtil e frágil entre a observação crua e a extrapolação poética, o autor faz-nos verdadeiramente acreditar de que é uma mulher quem nos escreve, sente e vive esta obra.
O enredo é surpreendente porquanto erra equilibradamente entre épocas distintas. Qual o elo existente entre Lisbeth Lorentz, a professora de piano que em 1892 se apaixona pelo seu aluno autista, Beatriz, estudante universitária, Lia Boyard uma sem-abrigo, sem passado aparente e a grande actriz Graça Boyard?
Da existência de cada uma destas mulheres, da intervenção directa de Beatriz na vida de Lia, faz João Tordo um soberbo tricô: «Nada é verdade, respondeu ele. E contudo, o que se aprende ao escrever é que tudo é verdadeiro mesmo quando mentimos.». Estes fios entrelaçados que ganham, numa surpreendente revolta narrativa, o seu expoente máximo, revelam-nos um autor exímio na arte de planear enredos, condutor firme e omnisciente de quando, como e o quê mostrar ao leitor. Há histórias dentro das histórias, livros dentro dos livros, obras de arte que unem os séculos e que a ironia do destino se entretém a revelar. Lisbeth comete um acto atroz num descampado da Baviera, talvez movida pelo amor talvez pelo medo e Graça Boyard abandona a filha, dividida entre os mesmos móbiles. O autor exime-se de fazer o julgamento, mas as vozes das vítimas prevalecem, numa partitura do século XIX, numa peça de teatro, num livro que se escreve e noutro que se reescreve pela mão de Beatriz, dando-lhe um rumo diferente, mais belo, mais justo, mais literário, mais sonhador, mais feminino. «E foi então que, quando a carruagem parou na estação do Marquês de Pombal, a lei que acabara de invocar na sua cabeça – a que proibia as coincidências impossíveis, as maravilhas orquestradas pelo Universo ou pela galáxia de biliões de neurónios que povoa a cabeça dos homens -, entrou novamente em acção (…)» As conexões mais ou menos remotas entre as personagens, reflectem esta máxima: não há coincidências e o destino apraz-se em costurar destinos.
As personagens deambulam à margem da sociedade, qualquer delas com estreita ligação à interpretação da realidade que é feita através da arte, pela música, pelo teatro, pela pintura e pela literatura, esta última, a poderosa arte que nos permite contar a História, a Verdade, a Justiça, do modo como gostaríamos que fossem e assim, de algum modo, como acabam por se tornar (« (…) tudo é verdadeiro mesmo quando mentimos»…).
A ligação entre Beatriz e Lia Boyard é ditada pela necessidade de reparação, de reposição, de redenção. Pelo que gostaríamos que fosse ou que tivesse sido, pela necessidade de sermos o anjo de alguém ou de termos alguém como anjo, pela intervenção fugaz que os nossos actos ditam nos destinos alheios e pelas suas consequências evitáveis ou inevitáveis.
«Eu era um excedente no lugar onde viviam os excedentes», a revolta pelo abandono dos que lhe sobrevivem, a vulnerabilidade, as máculas profundas nas vítimas de um amor distorcido ou da desídia de uma mãe, encontram nesta obra de João Tordo uma balada inspirada, melancólica, em cujas colcheias encontramos a beleza de uma obra consistente, que aconselhamos vivamente.
Mais recensões/crítica literária AQUI.