A Companhia das Letras traz-nos este A Noite da Espera, primeiro volume de uma trilogia designada “O Lugar Mais Sombrio”, do escritor brasileiro Milton Hatoum. Nascido na década de 50 em Manaus, apesar de se ter tornado professor de literatura e escritor, é arquiteto de formação e viveu na juventude as perseguições da ditadura.
Reconhecendo a mestria da escrita do autor, que efetivamente cria e descreve ambientes e contextos de uma forma bastante densa e envolvente, este não é um livro de fácil leitura. Na verdade, e em tempos de quarentena, custou-nos um pouco deixarmo-nos envolver por esta obra, marcadamente política e profundamente contextualizada num Brasil que, por mais próximo que esteja, não se revela assim tão familiar. Há termos e alusões utilizados, nacionais ou próprios das cidades focadas – São Paulo e Brasília – que serão mais facilmente apreensíveis por quem as tenha como familiares.
A obra é centrada na vivência – interna e externa – de uma personagem, Martim, homem magoado e dividido. À data em que “escreve” e narra, já em 1977, esta personagem reside em Paris, onde inicia uma narrativa retrospetiva: um diário em que regista e recorda os seus tempos de juventude, com particular enfoque em momentos marcantes como o divórcio dos pais e o seu afastamento da mãe (quando abandona São Paulo e se muda para Brasília com o pai) e o seu envolvimento na política da época, quando se torna parte de um núcleo estudantil universitário de intelectuais opositores da ditadura. A estória desenvolve-se, assim, entre a vida pessoal de Martim e a vida em Brasília durante a ditadura militar, ambas secas, áridas e truncadas.
De Martim, podemos dizer que nos parece um homem sensível, embora não o revele de modo evidente, mas apenas na descrição das suas escolhas, pensamentos e ansiedades. Percebe-se que quer mais, que há nele a voracidade que há em todos os artistas, mas arriscamos dizer que algo que fica sempre aquém. Num registo de profunda amargura e carência afetiva, é como se a vida de Martim nunca se realizasse, e todas as suas buscas, gestos e opções fossem determinadas por um simples desejo de recuperar o amor maternal de que foi privado, abrupta e inexplicavelmente.
Há neste livro algo que angustia e que magoa. Não se descrevendo – nem de modo indireto – a real violência da ditadura, retratam-se-lhe os habitantes silenciosos, amorfos, perdidos e confusos. Foca-se, em especial, o grupo de amigos de Martim, conotados com a comunidade artística, movimentando-se em torno do teatro e da literatura como forma de luta e de resistência. Ainda assim, mesmo neste contexto, sente-se a desorientação e o descomprometimento dos jovens, numa revolta que parece, por vezes, não totalmente fundamentada na plena compreensão da realidade que os rodeia, mas numa enorme vontade de romper com paradigmas sociais e familiares.
O medo paira sobre todas as personagens, agudizando-se à medida que a trama se adensa e nos emaranha nos pormenores mais sórdidos da ditadura e das suas repressões. Sabemos que as ditaduras fazem e tornam os homens mais sós e Milton Hatoum parte de Martim para contar essa solidão de dentro para fora.
Sendo parte de uma obra dividida em três, já se antevia que parte da trama ficasse por contar, mas diríamos que quem não se identificar com este estilo de narrativa terá de dar luta às primeiras sensações, para poder, a final, tornar a leitura frutuosa.
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