home Antologia, LITERATURA A Ocupação – Julián Fuks (Companhia das Letras, 2020)

A Ocupação – Julián Fuks (Companhia das Letras, 2020)

Qual o propósito da literatura? É uma das perguntas mais urgentes no final da leitura do mais recente romance de Julián Fuks, A Ocupação. O escritor, laureado com o Prémio Literário José Saramago em 2017, leva-nos a olhar para dentro, não só como leitores desta histórias, mas como partes de uma mesma sociedade, de uma mesma humanidade. Esta ocupação não aborda apenas a questão dos movimentos de ocupação de edifícios devolutos, aqui retratado pela Frente de Luta por Moradia, em São Paulo – as personagens são pessoas reais e identificadas pelos seus próprios nomes –, mas também a ocupação das nossas vidas, dos nossos desejos, como o da personagem feminina Fê em ser mãe – o seu corpo ocupado por uma gravidez – como a morte que ocupa o lugar da vida – a morte do cão Tango, a morte da tia Aída, o pai doente no hospital e sobre o qual o narrador vai criando um pensamento quase fatídico de morte (“A morte não se instaurara ainda, (…) mas eu já não era capaz de impedir que o seu silêncio me dominasse.”), para ser arrebatado desse mesmo pensamento pela afirmação do pai: “Não sei o que fazer depois da morte.” Mas além destas vivências mais quotidianas, esta ocupação tem um contorno mais universal: que lugar ocupamos na sociedade? Que lugar ocupa a literatura no mundo? A dúvida de pertença, ou de ocupação, é ainda mais marcante quando o narrador – ou o próprio autor – parece rodear-se de uma solidão que marca todas estas relações: a mãe que perde o bebé e a quem é quase impossível consolar, por mais próximo que estejam os corpos na dor; a impossibilidade do pai em conseguir explicar a sua dificuldade em respirar; na solidão de cada um daqueles ocupas – Carmem, Preta, Najati ou Demetrio –, “desocupados” que foram das suas famílias, das suas vidas, ou até dos seus países de origem.
Ainda que unido a todos eles por relações mais ou menos próximas, Sebástian – o alter-ego de Julián – apresenta-se como um espectador, não pela falta de empatia com os outros, mas sobretudo porque sente que não consegue “ocupar” aquelas vidas, aquelas dores, porque ele próprio se encontra desajustado, como confessa na carta escrita a Mia Couto (capítulo 35): “Estou escrevendo (…), um livro sobre esta interminável ruína que nos cerca, (…), mas escrevo protegido por paredes firmes.” É no momento de ocupação de mais um prédio vazio que Sebástian/Julián assume esta urgência, esta necessidade de fazer parte: “me fazer praça, me fazer rua, me fazer prédio vazio e que enfim me ocupasse o incontível da vida”, como se nesse único corpo se pudessem acolher todas as histórias, todas as dores, todas as esperanças, numa forma de encarnar a frase da autoria de Mia Couto, evocada na mesma carta: “Nenhum homem é um homem se não for a humanidade inteira.”
Julián assume, durante a escrita deste livro, essa presunção de querer explorar o outro, de se expandir através dos olhos dos outros, mas admite que nessa busca não consegue deixar de procurar por si próprio – Sebástian/Julián chega mesmo a ocupar um dos quartos do abandonado Hotel Cambridge em alguns momentos – e é nessa falta de pertença que indaga sobre o propósito da literatura, até da sua escrita. “A literatura, (…), poderia restituir algo da humanidade que perdemos (…). Mas a justiça não existe em parte alguma, parece.”
Esta aparente fragilidade enquanto autor, enquanto homem que se sente incapaz perante este mundo que se desintegra, é um dos maiores poderes da escrita de Fuks, e que já havia sido evidente no anterior A Resistência. Julián Fuks é o escritor que dá voz a uma sociedade que, de outra forma, permaneceria eternamente romantizada. Os refugiados, os resistentes, os abandonados, os pobres, os marginais… E ainda que sinta que a sua posição é de invasão – daí o momento em que abandona o gravador onde recolhe aquelas histórias – Fuks é para nós como uma testemunha desta sociedade que, muitas vezes, escolhemos ignorar. É precisamente quando Julián Fuks pensa que falha na sua tentativa de entrar nesta humanidade, que está mais dentro dela. Os ratos e as larvas que invadem a casa de Rosa, invadem-nos também e a luta dela é a nossa: “(…) cansei de ser ocupada por homem, por rato, por larva. Agora é a minha vez de ocupar (…)”. O terramoto da haitiana é o nosso terramoto e aquele pedido final é a nossa esperança: “(…) ponha algo mais do que a dor, algo mais do que a desgraça”.

A literatura tem certamente vários propósitos, mas um dos mais poderosos será essa faculdade de nos despertar, de nos manter acordados, e um dos propósitos do escritor é criar essa provocação perante “a miséria moral e a imbecilidade quotidiana dos mandantes do dia”, como responde Mia Couto a Fuks (capítulo 39).
A “literatura permanecerá para além de toda a ocupação.” (Mia Couto) e além de toda a ruína do mundo enquanto estivermos dispostos a aceitar o desafio de escritores como Julián Fuks: sermos inteiros, sermos humanidade.

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