Centrado no contexto que rodeou a Anschluss (anexação) da Áustria nos antípodas da II GM, neste A Ordem do Dia (D. Quixote, 2018), Éric Vuillard serve-se de instantâneos da época (fotos, eventos históricos públicos e privados) para lhes inventar os detalhes sonegados dos livros, preenchidos de uma narrativa sempre aquém do caldo de onde emergem. “O tempo das palavras (…) imobiliza todos os que se confrontam com ele” (pg. 14), assim na literatura, como na História, inevitavelmente escrita e cristalizada para memória futura.
Ao emprestar dúvidas, contradições, tiques, mas fundamentalmente emoções às personagens históricas, como Halifax, Chamberlain, Dollfuss e Schuschnigg, escondidas pela sombra monstruosa do ditador austríaco, não as humaniza, como seria expectável, antes as expõe e denuncia a sua inépcia crónica, a incapacidade de defenderem a sua pátria e os silêncios cúmplices, até que os factos se tornaram demasiados evidentes para serem negados. “Goebbels tinha inaugurado uma grande exposição (…) cujo tema era «O Judeu eterno». Era esse o cenário. Ninguém podia ignorar os projectos dos nazis, as suas intenções brutais. O incêndio do Reichstag (…), a abertura de Dachau, (…) a esterilização dos doentes mentais (…), a Noite das Facas Longas, (…) as leis de salvaguarda do sangue e da honra alemã, o recenseamento das características raciais, em 1935; era realmente muita coisa.” (Pg. 34)
Vuillard não se exime de julgar essas personagens, nalguns momentos de modo certeiro e até cómico, ecoando factos, por vezes desconhecidos, que o leitor, mais ou menos informado perante o que lhe é dado a ler, descobre e acompanha.
A propósito de uma fotografia Kurt von Schuschnigg de 1934, Vuillard discorre sobre a importância dos detalhes no desenho da História, e de como ela é facilmente manipulada e manipulável : “Há nos seus traços algo de mole, indeciso. (…) Se se olhar com atenção, nota-se que o avesso de um dos bolsos do casaco está amarrado pelo braço. (…) Mas esta fotografia, tal como acabo de a descrever, ninguém a conhece. É preciso ir à Biblioteca Nacional de França (…) para poder vê-la. A que conhecemos foi cortada (…) Uma vez reenquadrada, a fotografia produz uma impressão muito diferente. Adquire uma espécie de significado oficial, de decência. Bastou suprimir alguns milímetros insignificantes, um pequeno pedaço de verdade, para que o chanceler da Áustria pareça mais sério (…): como se o facto de ter fechado um pouco o campo, apagado alguns elementos desordenados, recentrando a atenção sobre ele, desse a Schuschnig um pouco de densidade. É tamanha a arte da narrativa que nada é inocente.”
Dono de uma escrita acessível e interessante, o multipremiado escritor francês começa o livro a justificar o título, com a descrição dos factos infames ocorridos a 20 de Fevereiro de 1933. Uma reunião secreta no Reichstag, fora da “ordem do dia”, que juntou na mesma sala Hitler, Göring e todos os grandes magnatas alemães da época, donos de empresas que ainda hoje nos são (demasiado) familiares: Opel, Krupp, Siemens, IG Farben, Bayer, Allianz, Telefunken, Agfa, BASF e Varta. “Mas as empresas não morrem como os homens” (pg. 16), relembra-nos Vuillard, “A sua vida dura muito mais do que as nossas.“. Uma espécie de Olimpo alemão concordou financiar o partido nazi e a sua campanha. “E se o partido nazi obtiver a maioria, acrescenta Göring estas eleições serão as últimas nos próximos dez anos; e até – acrescenta, rindo – nos próximos cem.” A estabilidade era propícia aos negócios e só isso interessava às 24 sombras que sorriam.
O capítulo mais surpreendente e revelador é o único que não se refere directamente aos eventos e personagens centrais da narrativa. “O Armazém dos Acessórios” descreve com detalhe o Hollywood Custom Palace, onde um intelectual alemão judeu, refugiado de guerra, encontra trabalho nos EUA, e “cujas galerias encerram todo o passado do homem em matéria de vestuário. (…) um guarda-roupa, aluga ao cinema os trajes de Cleópatra ou de Danton (…) roupa usada por toda a humanidade, o sublime nada (…) simulacros de lembranças. (…) É tudo falso.” (pg 115/116) Os vencedores e os vencidos da História cruzam-se na mesma prateleira e acontecimentos fulcrais da identidade humana tornam-se meros adereços de um espectáculo.
O detalhe surpreendente: o facto de que, ainda antes de a II GM ter terminado, “já lá estejam os trajes dos nazis” e o judeu “tem de engraxar as botas dos nazis com o mesmo cuidado com que escova os coturnos dos gladiadores (…) Aqui, o drama não é admissível, é preciso que os fatos estejam prontos (…) para a grande encenação do Mundo.” (pg. 117). Ainda a decorrer, a guerra mais sangrenta e brutal da História era já passado e fonte de lucro, arrumada em prateleiras e pronta a vestir. Uma parábola interessante para a forma como os EUA se serviram da II GM no estabelecimento da sua hegemonia mundial e para o absurdo da Arte perante a crueldade humana.
É evidente uma pesquisa aturada, reflectida ao longo do livro sem cansar o leitor com factóides e concentrando atenções e meios nas motivações e interesses de personagens-chave no desenrolar dos eventos. O tamanho compacto e a escolha criteriosa da informação trabalhada, algo similar a uma condensação de colossos como “Os Últimos dias da Humanidade” e outros, é um dos grandes bónus deste singular opúsculo.
Já o estilo de escrita, por vezes a roçar o sermão moralista, com que julga as personagens e os seus actos, é algo dispensável em vários momentos. Uma equidistância, embora difícil perante as estórias em questão, talvez produzisse um livro realmente superior. Uma excelente leitura, um livro indispensável para uma visão dos bastidores da guerra.
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