Cecília Tomé Vilela é A Pediatra que protagoniza o mais recente livro da escritora brasileira Andréa del Fuego. Como em qualquer outra classe profissional, em cada médico há uma existência paralela à função que escolheu exercer na sociedade. A bata branca e o estetoscópio ao pescoço são tradicionais símbolos de rigor, seriedade, competência, passaporte para privilégios e uma aparente existência impoluta, livre das dúvidas existenciais e crises emocionais que premeiam os restantes mortais. Nada mais erróneo (e até perigoso), demonstra-nos del Fuego ao longo do romance com esta pediatra que escolhe uma carreira “desapaixonada, com o pai no leme.” (24), apesar de odiar crianças.
“Detesto crianças e não sou eu quem as trata, mas a medicina que estudei.” (52)
O facto de ser mulher também não é casual, espicaçando ainda o nosso sentido ético-moral diante dos constantes atalhos que toma diante das contrariedades, assim como as racionalizações para os seus frequentes actos irreflectidos.
A narração em nome próprio, num tom quase omnisciente, iludida pela sua inteligência e capacidade de antecipação totalmente auto-centradas, adensa o presságio de desastre iminente a que vai escapando com alguma sorte e um pretenso controlo de que se gaba ao leitor.
A situação mais problemática acaba por se dar quando auxilia o parto do filho do namorado Celso (casado), sem que este se coiba de uns amassos durante o procedimento e a própria Cecília não exima de abraçar a perversidade da situação.
“Fui para o banheiro da suíte, Celso veio atrás, nos abraçamos enquanto a puérpera dava à luz a placenta. (…) Me sentei diante da vagina que recebia o mesmo pau que eu, agora rasgada pelo primogênito. (…) Celso também saíu da sala, provavelmente porque viu a amante costurando a vagina de sua esposa. Sentada no banco, dei mais pontos que o necessário. Por pouco não a fechei.” (17)
A performatividade aplicada ao género [vão ler o Problemas de Género de Judith Butler (originalmente de 1990, editado cá pela Orfeu Negro em 2017 – crítica AQUI], que, em suma, designa o papel que a sociedade nos atribui e espera que representemos e, por consequência, a que somos condicionados (forçados em demasiadas sociedades) para nos sentirmos parte do todo, “normais”, é o subtexto de todo o livro. Ser parte de uma classe profissional, com todos os seus rituais, pressões e expectativas, carregada ainda com o peso das responsabilidades associadas ao seu sexo é a justificação e fundamento para todas as suas decisões e palavras.
O talento da autora revela-se no destaque que dá à subversão camuflada que Cecília pratica, elevando o que poderia ser uma história banal. Hiper-consciente da sua condição social, manipula quem a rodeia para atingir os seus objectivos, escapando aos sacrifícios por regra impostos às mulheres e optando invariavelmente pelo hedonismo e o culto de um egocentrismo discreto, “sem nunca violar o contrato social” como nos diz Andréa del Fuego na entrevista que nos concedeu. A sua realidade é puramente intelectual e precede os factos, por vários cenários que prevê para depois concretizar, sem rasto de escrúpulos ou empatia. Del Fuego revela ter-se inspirado no conceito freudiano de neurose para este traço de carácter de Cecília, com quem confessa seria óptimo partilhar uma cerveja casual, mas mantendo a distância sob pena de ser “vampirizada”.
A forma como Cecília aborda as relações sentimentais e as interações com os elementos do sexo oposto é coerente com o utilitarismo da sua vida profissional: diante de um sintoma preocupante, encontra a terapia correcta e elimina o problema.
Todo este “equilíbrio” é perturbado quando Bruninho (que ajudou a nascer), vem despertar um instinto maternal e de protecção que jamais sentira, mesmo em situações limite com os seus pacientes. A sua existência recentra-se para enquadrar no seu mundo essa criatura salvífica a todo o custo, encarando-a como uma redenção, um despertar abrupto da anestesia em que vivia até ali, em contradição aberta com o seu desdém pelo Outro (com a excepção do seu Pai).
“Fala para a tia quantos anos você tem, pediu Celso. Bruninho não obedeceu, estávamos retomando a nossa ligação que eu, no parto, interessada mais em seu pai, não havia percebido. Era meu filho. Havia um mundo inteiro a convencer. (93)
Um processo difícil, com um desfecho aliciante.
Com uma prosa ritmada e mestria neste equilíbrio entre o real e a mitificação/negação em que a pediatra se enreda, Andréa del Fuego constrói uma narrativa credível e sagaz, com uma protagonista com que o leitor empatiza na sua disfuncionalidade, exposta nas suas múltiplas facetas, sem concessões, temperada por um humor niilista bem consentâneo com o absurdo da existência (dela e nossa já agora). Bem distante do livro de estreia – Os Malaquias – premiado com o Prémio Saramago em 2011, o espectro dos laços familiares assoma por aqui também, nesta maternidade inusitada que arrebata esta pediatra de libido elevada consumida pelo individualismo.
A não perder.
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