home Didascálias, TEATRO A Reconquista de Olivenza – Teatro Municipal São Luiz, 16/2/2020

A Reconquista de Olivenza – Teatro Municipal São Luiz, 16/2/2020

Existe uma linha ténue entre o sonho e o pesadelo: a frequência cardíaca, o suor, a respiração mais ou menos ofegante, o despertar. O despertar para o humor, para a necessidade de rirmos de nós próprios é a proposta de A Reconquista de Olivenza, peça escrita e encenada de modo brilhante por Ricardo Neves-Neves.
Num mundo paralelo, onde tudo seria possível, partindo do pressuposto da história de Olivenza (território português situado no Alentejo, mas ocupado em 1801 por Espanha), desloca-se a corte portuguesa sobre trotinetes e carrinhos de golfe em vertiginosa exibição humorística, crítica social e política, entre beijos inusitados e (sor)risos rasgados. Em todo o caos existe definitivamente uma ordem (um yin-yang trepidante), com as marcações feitas ao milímetro e o trabalho de detalhe a revelarem-se inexcedíveis.
Numa produção com cerca de vinte e dois actores em palco e uma equipa de cinquenta e sete pessoas, cenários que incluem cenário dito tradicional, vídeo-mapping (e não vos estraguemos a emoção com mais spoilers) inclusive orquestra ao vivo, só se poderia esperar a emergência de uma nova ordem, uma surpresa a cada cena, nos limites do humor ou, tal como Bergson profetizava, nas teias da incongruência, onde reside o riso. Dessa característica sem dúvida gozam os portugueses. Se o destino é fado e o povo é deprimido, esta Reconquista de Olivenza é um olhar desconcertante e de lince sobre o português. É nas margens que encontramos a verdade deste povo – dilacerado, à procura de uma bola de cristal tomada por espanhóis em Olivenza numa Igreja recôndita, para recuperar um Quinto Império há muito pressagiado e descobrir, tão simbólica e desajeitadamente, que a profecia se cumpre no interior, a nível individual e conjugando esforços. Rimos, na esperança vã da amabilidade e consequente graciosidade da vida. No entanto, como uma rosa espinhada, inesperadamente um lado mecânico adquire dimensões corporais, o riso surge, a convulsão apodera-se de nós. E a loucura de (in)consciência na jornada dos vários heróis até Olivenza é feita de modo progressivo, piscando olhos de Dragão a Campbell, numa jornada heroica.
A Corte reúne e sob as ordens do General Bubu (competente interpretação de Márcia Cardoso, importado do universo Dragon Ball) e da sua estratégia (ou ausência dela), parte à aventura que o levará a várias peripécias e ao pântano existencial. Tentando sempre reverter a Lei de Murphy (“whatever goes wrong will go wrong”) através de diversos aliados, a Rainha e a corte, numa lógica de total “desenrasque”, profundo apanágio do povo português, conseguirá contra tudo e contra todos atingir o seu propósito inicial.
Entrecruzando cinema, dança e o musical, A Reconquista de Olivenza é um diálogo feliz entre o caos e a ordem, o tradicional e o ancestral, ao combinar um teatro municipal de gabarito como o São Luiz com um universo de quase BD e videojogos com efeitos especiais, nunca esquecendo o verdadeiro espírito do teatro. Para além disso, é um corte com o purismo intelectual e, nessa medida, subversivo. Há um deus ex machina constante ao longo da peça, a tirar as coisas do lugar e da caixa para que o imprevisto surja através do trejeito, da caricatura da nossa boçalidade, criando um inusitado exame da consciência nacional ou falta dela, no limite da dor e do amor – veja-se o desespero anedótico e hiperdramático no episódio da despedida entre Bubu pela Raínha na proa do navio.
A composição e orquestração esteve a cargo de Filipe Raposo, com enfâse no barroco, particularmente do século XVII e XVIII, com grande influência de Bach e Jean-Baptiste Lully, o compositor do rei Luís XIV, entre outras tessituras eclécticas na “misturadora sonora”do talentoso músico. A direcção da orquestra está a cargo do Maestro Cesário Costa. Veículo por excelência de emoção, a música conferiu o ritmo certo à produção, tornando-se uma personagem omnipresente. Um enorme privilégio assistir a tamanho bom gosto e originalidade, combinando anacronicamente espaços e tempos com referências pop.
Sílvia Filipe dá corpo à Rainha personagem central e consistente da peça e um íman para o restante elenco. Mãe dos herdeiros ao trono – Beatriz e Sebastião II, os irmãos “aparvalhados” que serão atingidos pela seta do Cupido, mais importantes do que se possa pensar para o desenrolar da peça – não é Rainha contra todas as expectativas “sem rei nem roque”.
Fantasmas históricos materializam-se na “margem soviética”, entre revolucionários subornáveis com um preço, num xadrez de balbúrdia e negociação malandra. As bolas de Berlim do Califa e companhia também adocicaram a boca da Rainha e da corte em terras e mares movediços e a Enviada Especial Chinesa e Mary Poppins tornam-se indispensáveis no cumprimento da missão lusitana quase impossível.
Destaque para uma fabulosa prestação de Teresa Faria no papel de Rainha-Mãe, uma espécie de sofisticação invertida da Rainha de Inglaterra. Brejeira, materialista reducionista, mas ternamente amada e querida aquando do seu rapto. De assinalar a entrega notável da actriz, na quebra do estereótipo geracional, emprestando uma maturidade essencial ao equilíbrio do espectáculo. Como personagem mais experiente e debochada da peça, e por isso a que mais sabe viver, acaba por simbolizar um inconsciente colectivo de outrora.
Se a falta de auto-estima portuguesa se opõe ao onanismo crónico espanhol, nesta loucura barroca e corte andante, ninguém escapa ileso, nem mesmo a devoção religiosa. Personagens ex-libris na peça: as Nossas Senhoras – de Fátima, de Lourdes e Guadalupe. Numa espécie de Sex and the City regado a Martini e Champagne, cartas de tarot, mapas astrais e búzios, sobressai o protagonismo e a prestação soberba de Sandra Faleiro na tríade virginal.
Após o final do espectáculo de aproximadamente 90 minutos, a equipa de A Reconquista de Olivenza reuniu-se progressivamente em palco para conversar com o público resistente a tamanha aventura. Com preparação de cerca de exaustivos dois meses e uma exibição de dez récitas em Lisboa, o sentimento geral foi de que o esforço compensou, mas que o tempo voou e tanto investimento e dedicação mereceria mais tempo em cena. Para além disso, a inevitável questão que a todos foi transversal – a definição de felicidade. Na peça seria conquistada durante mil anos com o despertar do grande Dragão Lusitano com a reunião das sete bolas de cristal. Variadas respostas surgiram, em comunhão com a plateia atenta, participativa e bastante composta. A discussão abriu-se ao público (como resultado de grande desejo da equipa em palco) e sucederam-se questões sobre dificuldades, falhas e os desafios físicos.
A moral desta história, se é que é válido extraí-la, é a queda paradoxal da ideia separatista, e a necessidade de cooperação e do amor (de qualquer tipo), irmandade e/ou humanismo para potenciar evolução, sem fronteiras ou nacionalidades, colocando de parte a requintada ganância que talha os genes de uma roleta russa de um corpo recém-nascido. O beijo do humor, simultaneamente poético, tão físico e real em qualquer acepção do termo – da realeza e do cidadão comum. Basta existir e querer ser feliz. Olivenza é nossa!

Ficha Técnica

TEXTO E ENCENAÇÃO Ricardo Neves-Neves
COMPOSIÇÃO E ORQUESTRAÇÃO Filipe Raposo
INTERPRETAÇÃO Ana Valentim, Bruno Huca, David Mesquita, David Pereira Bastos, Diana Vaz, Joana Campelo, Márcia Cardoso, Rafael Gomes, Rita Cruz, Ruben Madureira, Sandra Faleiro, Samuel Alves, Sílvia Figueiredo, Sílvia Filipe, Sissi Martins, Susana Madeira, Tadeu Faustino, Tânia Alves, Teresa Coutinho, Teresa Faria, Tiago da Cruz, Vítor Oliveira e Filomena Cautela (em vídeo)
MÚSICOS Nelson Nogueira (I violino), Malu Santos (II violino), Eurico Cardoso (viola), Sara Abreu (violoncelo), Romeu Santos (contrabaixo), Tânia Mendes (percussão I), Cristiano Rios (percussão II), Natália Grossmanová (flauta), Pedro Capelão (oboé), Marta Xavier (clarinete), Gonçalo Pereira (fagote), Ricardo Alves (trompa I), Luís Mota (trompa II), Óscar Carmo (trompete), Hélder Rodrigues (trombone), Jenny Silvestre (cravo)
MAESTRO Cesário Costa
DIREÇÃO VOCAL João Henriques
COORDENADORA DE ORQUESTRA Paula Meneses
ADAPTAÇÃO E LOCUÇÃO DA NARRAÇÃO Eduardo Rêgo
SONOPLASTIA Sérgio Delgado
DESENHO DE LUZ José Álvaro Correia
DIREÇÃO TÉCNICA TDE CR Creative Projects
CENOGRAFIA Catarina Barros
ASSISTENTE DE CENOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DE ADEREÇOS Cristóvão Neto
ASSISTENTE DE CENOGRAFIA Susana Paixão
CONSTRUÇÃO DE CENOGRAFIA Móveis Maia, Sign-wide Format Print e Thomas Kharel
COSTUREIRAS DE CENOGRAFIA Ana Maria Fernandes, Maria Costa
FIGURINISTA Rafaela Mapril
CONFEÇÃO Carla Geraldes, Helena Jardim, Lígia Garrido, Maria Afonso, Mónica Fortes, Shabbir Hussain, Esboços Ilimitados Lda, Ana Sabino Atelier: Celeste Sacramento, Sandra de Arez, Anabela Oliveira
ASSISTENTE DE FIGURINOS Patrícia Andrade
CARATERIZAÇÃO E CABELOS Cidália Espadinha
ASSISTENTE DE CARACTERIZAÇÃO E ADEREÇOS Beatriz Pessoa
ASSISTENTES DE CARACTERIZAÇÃO Bruno Saavedra, Sónia Lisboa, Dennis Correia
ASSISTENTE DE FIGURINOS Patrícia Andrade
COREOGRAFIA DE COMBATES Tiago da Cruz
VÍDEO / ANIMAÇÃO/ ILUSTRAÇÃO TEMPER creative agency
TEASER PROMOCIONAL Eduardo Breda
ART DESIGNER José Pinheiro @o_pinheirojose
APOIO À DRAMATURGIA E ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO Rafael Gomes
ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO Diana Vaz e Ana Valentim
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO E DE ENCENAÇÃO Tadeu Faustino
PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO TDE Mafalda Simões
PRODUÇÃO CULTURPROJECT Nuno Pratas
COPRODUÇÃO Cine-Teatro Louletano, Teatro do Eléctrico, Culturproject e São Luiz Teatro Municipal

Foto © Filipe Ferreira

A peça estará em cena a 21 e 22 de Fevereiro no Cine-Teatro Louletano.

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