Chegamos tarde a este A Resistência (Companhia das Letras Portugal, 2016), a pretexto do recém atribuído Prémio Saramago ao seu criador Julián Fuks. Saímos dele (porque é de uma construção que nos retiramos depois de lida a última palavra) felizes por o termos feito nosso, lido, anotado e repetido em inúmeros trechos. Evocações, memórias, reconstituições dúbias (“não consigo recordar”, “não consigo lembrar”, “sei e não sei” e outras expressões similares são frequentes), são a base para Sebástian, nosso narrador, alter-ego de Julián, a pretexto de se estender sobre a história dos pais e do seu irmão mais velho, ensaiar um monólogo sobre a sua busca primordial. “Sou eu (…) que desejo encontrar um sentido, sou eu que desejo redimir a minha própria imobilidade, sou eu que quero voltar a pertencer ao lugar a que nunca pertenci. Entendendo enfim, situado enfim, decido enfim partir: nada me restituirá lugar algum, nada reparará o que vivi, pois não parece haver nada a ser reparado em mim.” (pg. 198)
O livro é, em última instância, um “fracasso”, objecto útil apenas na medida e aquando da sua formulação e concretização, na eventual empatia com algum leitor, para depois se dissolver, tal como Sebastian, no seio de uma família (que, tal como todas, vive dos seus dramas, disfunções e idiossincrasias), e entre dois países: o Brasil, onde nasceram autor e narrador, e a Argentina (Buenos Aires em particular, de onde os pais são obrigados a fugir, para escapar à morte), que o atrai e o repele em idêntica medida, negando-lhe a serenidade de um lar real, cujos contornos esboça nestas páginas inspiradas.
A resistência do título materializa-se em diferentes momentos. Começa com a hesitação permanente de Sebastian em dar um tom definido e definitivo ao livro, encalhado entre o registo diarístico e autobiográfico, a ficção, a literatura engagé, a poesia e a parábola. “Isto não é uma história. Isto é história (…) e, no entanto, quase tudo o que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras.” (pg. 37) “Não consigo decidir se isto é uma história” (pg. 39). Estende-se à renitência em assumir como reais as memórias descritas, hesitando entre a assunção de uma visão mais romantizada dos factos e o receio de cometer alguma injustiça para com vidas ligadas à sua, à recusa de retratos unívocos de situações e personagens complexas, mas também e de modo mais central, ao afastamento voluntário do irmão adoptado em relação à família. Esta centralidade temática contagia outras personagens e contextos: as reservas dos pais (no engenhoso epílogo) em conformar-se com a (re)construção do passado familiar por Julián/Sebastian e, por último, talvez o veio transversal a toda a obra: a resistência a dois regimes ditatoriais, com todas as cedências e sofrimento(s) inerentes, “a sensação da casa tomada” (pg. 77).
Num dos trechos mais belos do livro, detalha-se o momento mágico da rotina e familariedade do estrangeiro em terra adoptada (o Brasil ditatorial), em que se desenha uma nova casa, em “que o que era alheio se tornou próprio” (pg. 127). “Você sorri e crê entender, embora não entenda, algo sobre aquela gente, algo de próprio e real sobre sua alegria, sobre sua beleza, aquela beleza alheia que talvez um dia você consiga imitar (…) Você sorri e cogita se a beleza não será sempre alheia , algo que ninguém consegue reconhecer em si, algo de evanescente que só se estampa no rosto do outro, jamais no seu. Você se pergunta, nesse dia, não se um dia será capaz de tornar a beleza algo próprio, fazer da alegria algo seu, mas se será capaz de um dia se fazer também outro, se fazer também alheio.” (pg. 128). Neste curioso e revelador reconhecimento da sua própria condição dúplice, de Sebastian narrador/Julián escritor, este(s) confessa(m) a sua desmultiplicação e o ensejo (quem nunca o teve) de “zerar” a vida, começar de novo. Apesar de nascidos no Brasil, o peso da dupla identidade não os abandona e a explicação possível, sempre em forma de dúvida maieutica/psicanalítica, é formulada: “Pode um exílio ser herdado? Seríamos nós, os pequenos, tão expatriados quanto nossos pais?Devíamos nos considerar argentinos privados do nosso país, da nossa pátria? Estará também a perseguição política submetida às regras da hereditariedade?” (pg. 30).
Finda a leitura, a insegurança do narrador, pouco confiante ou digno de confiança, estende-se ao leitor, enredado com gosto na mentira em forma de livro. Mentira porque as memórias lhe são legadas pelos pais, mastigadas pelo tempo e iteração dos relatos, férteis em fantasias e devaneios. E somos Sebastian, somos o irmão adoptado e rebelde, os pais inconformados, que escolhem a resistência pela vida, o amor e a família, em detrimento das armas e da morte certa. Porque, como em toda a grande literatura, sem esforço nos reconhecemos nestes conflitos e dilemas, e o instinto nos alerta quando um escritor consegue a proeza de tomar o pulso a algo que supera a sua circunstância, transversal a tempos e nações, e o torna linguagem. Pela simples leitura, o particular, a “invasão do que temos de mais íntimo” receada pelo pai no epílogo, converte-se em universal.
Este sentido reencontrado a cada página, infinito recomeço comum a cada obra de Arte, exige atenção e tempo, utopias esquivas na pesada e exigente rotina quotidiana. Livros como este são um convite de retorno ao que nos resta de primordial: a empatia, o acto criativo, a dúvida e o questionamento, a capacidade de (ainda) nos maravilharmos. Em suma: a possibilidade de ser Outro, que somos nós revisitados, de resistir ao marasmo dos empecilhos que toldam o nosso caminho e visão. Pelo menos até que o livro se feche.
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