home Didascálias, TEATRO A Vida de Galileu – Palácio do Bolhão, 10/11/2017

A Vida de Galileu – Palácio do Bolhão, 10/11/2017

A encenação de Kuniaki Ida deste clássico da modernidade segue os ditames disseminados pela obra dramática e teórica de Bertolt Brecht. Em vez de projectar uma ideia de verosimilhança «naturalista», que criasse aquilo que a tradição poderia chamar «ilusão cómica», as opções do encenador vão no sentido de um certo esquematismo. Deliberadamente, este posicionamento deixa à mostra as infra-estruturas que fornecem as dimensões que sustentam a acção. Não se pretendeu camuflar os fios, as peças, os mecanismos que subjazem às movimentações em palco. Porque importa muito menos fingir a verdade da cena do que afirmar nela a realidade dos conflitos pessoais e, sobretudo, as lutas histórico-sociais de uma época. Desta, entretanto, pode perfeitamente extrapolar-se para o tempo de Brecht, como para qualquer outro. Assim, através de discretos mas perceptíveis gestos cenográficos, o esquemático domicílio de Galileu Galilei dará lugar a uma plataforma polivalente, que será palanque de acesso aos espaços interiores e exteriores da cena, vestíbulo variamente doméstico, local de recolhimento para conversas recatadas entre a filha e a governanta de Galileu, desempenhando, ainda, uma variedade de outras funções: desde um «aposento do Vaticano», espécie de quarto de vestir do Papa, a local de observações celestes.

O conflito entre poder absoluto – independentemente da forma que ele assuma – e a autodeterminação individual e colectiva da acção humana, é, naturalmente, de qualquer época. A recriação de um passado recuado, na peça de Brecht, fornecida pelos figurinos e pela presença de figuras históricas (líderes políticos e religiosos, o próprio Galileu), não desmente o propósito instigante de A Vida de Galileu e do teatro de Brecht: agitar consciências. Embora o tempo da acção – início do século XVII – seja um facto ineludível, a «universalidade» dos conflitos postos em marcha produzem um movimento imaginário semelhante ao do Sol: constantemente de lá para cá. Do passado para o presente, da História para o documentário. Em última análise, é uma questão de desmandos e imposições, o fulcro da acção em A Vida de Galileu. No «Prólogo para a Representação Americana da Vida de Galileu», Bertolt Brecht resumia em dois versos o propósito fundamental da peça, apontando a tensão que a percorre por inteiro: «A luta da lei da gravidade com o gratias dei/ Da ciência com a autoridade» (Poemas, Bertolt Brecht, Edições Asa, 2007, trad. Paulo Quintela, org, António Souza Ribeiro). Dessa oposição se fará a matéria de A Vida de Galileu. O ânimo que dá vida a esta criação de Brecht não é, exactamente, a biografia do cientista, mas a sua integração num determinado tempo, em determinada conjuntura da História. Os choques em cadeia provocados pelo dínamo do seu génio, pela faísca da sua individualidade.

ANDREA (Em voz alta). Desgraçada a terra que não tem heróis!

(Galileu entrou, totalmente mudado pelo processo, quase irreconhecível. Ouviu a frase de Andrea. Espera alguns minutos na porta por uma saudação. Já que esta não vem, pois os discípulos recuam diante dele, avança em frente, lento e inseguro devido à fraca vista. À boca de cena encontra um banco onde se senta.)

GALILEU. Não. Desgraçada é a terra que precisa de heróis.

Porque A Vida de Galileu não se resolve – nunca se tratará de resolução, mas de revolução, dos corpos celestes e dos corpos e espíritos terrestres – na simples afirmação do individual e do colectivo. Também estas duas dimensões entram em guerra. Galileu chegará ao ponto de estar sozinho perante o imenso cosmos, perante o imenso panorama da injustiça humana – e dos emissários do divino. Estes são aspectos que chocam de frente com um panorama de obediência e uma mentalidade de rebanho. No redil só aparentemente livre das grandes potências da Península Itálica, marcos da acção de A Vida de Galileu – Grão-Ducado da Toscana, República de Veneza, a Cúria Romana –, tudo são simulacros. Quando Galileu se confronta, em Florença, com as autoridades do saber – o Matemático e o Filósofo –, a casmurra obediência à tradição medieval esbarra com as evidências mais claras do saber moderno. A separar Galileu dos escolásticos, o telescópio – símbolo do saber e instrumento da libertação. O cientista roga aos «sapientes» florentinos um olho espreitador pelo «tubo», mas a prosápia do saber antigo e a sujeição acrítica ao conforto do conhecimento cristalizado falam mais alto, berram, ofuscam:

GALILEU (Quase servil). Meus senhores, a fé na autoridade de Aristóteles é uma coisa; os factos que se tocam com a mão, são outra. Os senhores sustentam que, segundo Aristóteles, existem lá em cima esferas de cristal, de modo que determinados movimentos não poderiam ocorrer porque senão os astros perfurariam as esferas. Mas, como, se vossas senhorias podem verificar esse tipo de movimentos? Talvez então cheguem à conclusão de que tais esferas não existem. Senhores, rogo-lhes com toda a humildade, confiem nos vossos olhos.

O MATEMÁTICO. Meu estimado Galilei, por mais que lhe pareça antiquado, costumo ler Aristóteles de quando em quando e posso garantir-lhe que aí, sim, confio nos meus olhos.

A luta de Galileu será, portanto, travada em mais de uma frente. Contra a autoridade – mal dividida entre civil e religiosa, numa era em que temporal e eclesiástico se confundiam perniciosamente –, contra o dogmatismo dos sapientes e contra a obstinação ignorante do senso comum. Mas também contra si próprio, contra a sua consciência. Até a sua ânsia de descoberta e de fazer, de progredir a ritmo mais acelerado, de tudo abarcar e compreender. A conversa que mantém com um amigo, Sagredo, revela a permeabilidade de Galileu ao tumulto provocado pela sua própria acção. Falando com o amigo, é quase como se falasse consigo e expusesse as perplexidades que dilaceram um homem absolutamente moderno num tempo que teima em não abraçar a modernidade que anda no ar.

SAGREDO. Perdeste o juízo? Sabes realmente no que te estás a meter se isto que tu vês é a verdade? E ainda mais se o gritares na praça pública? Que a terra é um astro e não o centro do universo?

GALILEU. Sim, sim. E não que todo o gigantesco universo com todos os astros roda em torno da nossa pequeníssima terra, como todos pensam!

SAGREDO. Então só há astros. E onde está Deus?

GALILEU. Que queres dizer?

SAGREDO. Deus! Onde está Deus!

GALILEU (Colérico). Ali não! Tal como não estaria na Terra se aqui o procurassem os que lá vivem, se lá houver seres viventes.

SAGREDO. E onde está então Deus?

GALILEU. E eu sou teólogo? Não, sou matemático.

SAGREDO. Antes do mais és um ser humano e eu pergunto-te: onde está Deus no teu sistema universal?

GALILEU. Em nós mesmos ou em lado nenhum!

SAGREDO (Gritando). Como dizia o condenado à fogueira?

GALILEU. Pois, como dizia o condenado à fogueira.

O «condenado à fogueira», que é uma das referências que abalam a peça, e um dos espectros que a assombram, é Giordano Bruno. É esse destino que Galileu pretende evitar; e é devido a esse exemplo trágico, que o precedeu, que o cientista acatará as ordens das autoridades eclesiásticas, e há-de desempenha o seu papel na célebre farsa da abjuração. É devido ao medo e à vontade de ficar do lado dos vivos que Galileu, no fim, sobreviverá à sua própria proposta de modernidade, à sua revolução. Um cínico falaria de dois passos atrás para dar um à frente. Brecht quis manter-se fiel à evidência dos factos históricos. O crepúsculo da vida de Galileu é representado de uma forma especialmente despida. A sós em cena, ou quase, Galileu será apenas um homem. O resto de um homem. Extirpado das suas atribuições de pensador e cientista, Galileu é um prisioneiro, sobrevivente quase póstumo, a escrever às escondidas, fazendo contrabando das suas próprias obras, esperando que, noutras paragens mais arejadas, elas possam encontrar espíritos abertos à novidade e à revolução dos saberes.

Como talvez não pudesse deixar de ser, A Vida de Galileu, enquanto espectáculo é, sobretudo, Galileu. Interpretado por um António Capelo em excelente forma, que enfrenta um texto soberbo mas difícil, onde se cruzam saberes diversos e dados epocais específicos na sua exigência, onde as falas são encorpadas, e há notáveis picos de emotividade, de um grau pungente. De resto, ele será a única personagem em cena na qual a passagem do tempo claramente imprime o seu desgaste. A filha de Galileu vê alterada a roupagem, passando da esperançada moça casadoira do início à inadiável solteirona do epílogo; o Cardeal Barberini virá a ser o Papa Urbano VIII; mas é em Galileu Galileu que se concentra a inclemência do tempo. E é sobre essa personagem, e sobre o actor que lhe dá vida, que recaem, naturalmente, as energias principais da peça – e o castigo do tempo. Protagonista e actor souberam fazer-lhes frente com garbo.

Fotos © Ana Margarida Pinto

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