Em A Vida Sonhada das Boas Esposas (Companhia das Letras, 2019), o novo romance de Possidónio Cachapa, o escritor conta-nos a história de Madalena, 66 anos, esposa e mãe, que faz parte de uma geração de mulheres que foi educada para ser tanto e só. Mulheres ensinadas a ser submissas, quase invisíveis, a silenciosamente antecipar e prover a todas as necessidades dos maridos e filhos. A ser muitas vezes cegas e outras tantas surdas. A ser um degrau bonito e perfumado na escada de ascensão ao sucesso dos maridos e dos filhos e a contentar-se com isso mesmo. Mulheres ensinadas a cuidar de todos mais do que si.
O romance inicia-se com a viuvez não antecipada da protagonista que percebe, pouco depois do funeral, que o defunto marido não seria afinal merecedor de uma milésima parte daquilo que lhe foi dando e outro tanto de que foi abdicando, ao longo da vida. Ao lado de Madalena, estão os seus filhos, adultos desestruturados e caprichosos, a quem tudo é devido e nada é cobrado, numa espécie de amortização perpétua da “dívida original” vencida com o acto do nascimento. Cátia e Diogo têm sobre os pais um enorme ascendente (especialmente sobre a mãe, educada para ser dominada e nada exigir, nem sequer dignidade no tratamento e na atenção), e na chantagem emocional a sua melhor arma.
Ao longo da narrativa, vão-nos sendo apresentadas novas personagens, sobretudo mulheres que, de uma forma ou de outra, vão contribuir para as mudanças estruturais em Madalena que, como as mulheres da sua geração, “fora educada para acreditar que o marido e os filhos, bons ou maus, teriam de lhe bastar até ao fim”. A protagonista acaba por embarcar (literalmente) numa aventura, que apenas havia ousado sonhar em adolescente:“As pessoas não mudam de um momento para o outro só porque saem a correr de um navio onde deviam ter ficado encerradas até ao desembarque final. Mas, quando decidem atravessar um passadiço contra a vontade de seguranças, ou deixam que o exército de nomes feios que tinham amarrado na masmorra da auto-censura se liberte e trucide rostos que antes se viam obrigados a respeitar, alguma coisa acontece. Há um princípio de mudança que se põe em marcha. Abrem-se novas possibilidades de ser-se de novo corajoso”.
O autor presta, assumidamente, uma homenagem ao que se convencionou chamar de paraliteratura, em especial aos romances de cordel e dentre estes a uma autora em particular, Corin Tellado, fazendo a sua protagonista viver uma aventura digna de uma das mais de quatro mil obras escritas por esta autora. No entanto, ao mesmo tempo que torna reais os sonhos eternamente adiados por Madalena, o autor pincela de negro uma tela que começa por pintar predominantemente decor-de-rosa. As águas calmas sobre as quais desliza o cruzeiro de todos os sonhos apenas o são à superfície. Abaixo desta, continuam presentes correntes fortes e antigas (personificadas na filha Cátia), prontas para arrastar para o fundo a protagonista.
“A Vida Sonhada das Boas Esposas” não é, de modo algum, um livro simples. Profundo na mensagem, Possidónio Cachapa capta verdadeiramente a alma lusa, e o espírito da geração de 70. Com a sua escrita fluída, irónica e bem-humorada, pinta um quadro realista e actual da vida de muitas famílias, da relação dos progenitores com os filhos adultos, do papel da esposa e da frugal existência para que possam ser satisfeitos todos os caprichos da descendência. Cachapa toca-nos pela proximidade, fazendo-nos sentir empatia, por algumas,e repúdio, por outras tantas personagens.A capa é cuidada e em perfeita sintonia com a história. Numa nota pessoal, nós, que temos em Corin Tellado um dos guilty pleasures de adolescente (descoberta num baú esquecido no sótão), lemos com gosto “A Vida Sonhada das Boas Esposas”, que presta uma justa homenagem aos romances que marcaram uma geração.
“Só depois zarparam, em direcção ao mar alto, a pedido de Ramón, que queria ter um momento de intimidade com aquela a quem agora poderia chamar “sua mulher”. E o comandante do navio, que o conhecia desde menino, sorriu e mudou a rota na direcção em que o Sol começava a pôr-se.”
Depois… a vida acontece.
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