A vida no campo. A polissemia desta expressão não existe na língua alemã em que foi rodado A Zona de Interesse, adaptação cinematográfica do romance homónimo de Martins Amis. É, porém, nas idílicas margens de um rio na Polónia que o espectador encontra, na cena inicial, a família de Rudolf Höss (Christian Friedel), comandante do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, durante um agradável piquenique de domingo, regressando alguns minutos depois a uma desafogada casa de família situada lado a lado com o muro de arame farpado.
O protagonista do filme é Höss, a figura real responsável pela gestão de Auschwitz, e não o seu alter-ego no romance, Paul Doll. A adaptação ao cinema opera, portanto, uma reversão do distanciamento ficcional do livro, aplicada não apenas na língua utilizada e na reconstrução do nazi histórico, mas na intriga, que é inexistente no filme, tal como a focalização narrativa tripartida do romance. Ali, o comandante é levado pelo seu oficial a acreditar numa traição pela esposa, cuja morte é encomendada a um judeu que faz parte de um Sonderkommando, equipa rotativa incumbida de encaminhar os prisioneiros para câmaras de gás e posteriormente limpar e preparar o espaço para a seguinte leva de vítimas. As três figuras – Doll, o oficial e o judeu – dividem entre si a narração e, sobretudo no que respeita à figura do comandante, a sátira é uma ferramenta estruturante.
Em forma literária, as suas preocupações ressoam mais esdrúxulas do que as do Höss cinematográfico, cujo retrato oscila entre um pai afetuoso, um homem com necessidades sexuais básicas e um mero funcionário ambicioso num emprego banal. As funções desse emprego estão em pano de fundo, em harmonia com os jatos de vapor de comboios cheios de judeus que chegam repetidamente à plataforma de Auschwitz. As dinâmicas de industrialização do horror pontuam todo o filme de Jonathan Glazer, mas por via da sugestão discreta de signos que o espectador se habituou a identificar com o Holocausto, e que, somente sugeridos, concorrem precisa e unicamente para isso: a referencialidade histórica. Está e não está a deportação; está e não está a violência arbitrária sobre os judeus; está e não está a câmara de gás. Porque este não é um drama histórico sobre o Holocausto, mas uma tese sobre a existência contígua de uma vida no campo em sentido clássico – locus amoenus – e a vida no campo da gramática totalitária – Konzentrationslager: das águas bucólicas do rio, abrigo de atividades de ócio de um Rudolf Höss carinhoso com os filhos, emergem de repente restos de cadáveres, assim como o jardim da casa cuidadosamente planeado pela esposa de Höss “para não se ver o muro para o campo” é atravessado espectralmente por judeus obrigados a assear as botas do comandante.
Não é um acaso que portas, escadas ou muros sejam cenários recorrentes. A linha fina que separa o aprazível do hediondo manifesta-se inclusive num soalheiro milheiral no qual se vislumbra, sem nitidez, um grupo de prisioneiros forçados a transferirem-se do campo para as zonas de trabalho, ou na abelha que colhe pólen numa flor com gritos, disparos e pedidos de misericórdia audíveis à distância. Estes efeitos sonoros são suficientes para que se evidencie a zona de interesse como espaço limiar entre a banalidade da vida quotidiana e a execução das mais grotescas formas de violência. A fúria de Hedwig, a esposa (Sandra Hüller), face aos erros cometidos no trabalho doméstico da judia serviçal, é a mesma com que recebe a notícia de que o marido vai ser transferido para o campo de Oranienburg, “logo agora que encontraram ali a sua felicidade, o seu espaço vital”. Lebensraum, em alemão, vocábulo central da febre nazi de expansão para o leste, que a mãe de família indignada articula junto com o termo “paraíso”. O sonho vendido aos alemães era este e não abdicaria dele sem resistência. Afinal, esta família vive num éden moderno, lar também de animais tratados como os seres humanos do outro lado do muro não sonhariam: o cão que habita a casa de família faustosamente ou a égua pessoal de quem o comandante se despede com pesar antes da transferência para o outro campo.
Glazer escolhe não revelar as exaustivamente fetichizadas atrocidades de Auschwitz, antes desviar o olhar do espectador piedoso para o que está do outro lado do campo: uma casa de família, uma fábrica, uma reunião de comandantes SS em que se tratam as estatísticas de uma limpeza étnica com o espírito resolutivo do mundo dos negócios. Igualmente, e num salto temporal inesperado, a limpeza rotineira dos vidros que hoje em dia separam o visitante de Auschwitz e os vestígios do horror empilhados no museu, surge como um ato indecente.
Um filme que trate o Holocausto suscita sempre entusiasmo e suspeição, dependendo de como se olha para o cinema: registo histórico ou entretenimento? Pedagogia ou fruição estética? Sobre o Holocausto e como o representar escreveram-se milhões de caracteres, mas é certo que, oitenta anos depois, são supérfluas quaisquer bulas prescritivas sobre como olhar para Auschwitz. Através das possibilidades da técnica, Glazer alinha-se com o dilema hermenêutico da arte como barbárie pós-Auschwitz. Trabalha de forma criativa os aspetos mais vulgares da vida dos Höss, mas remete para a invisibilidade ou para a qualidade secundária da imagem os atos de deserção ou de bondade espontânea. É o caso, respetivamente, do desaparecimento abrupto da mãe de Hedwig, que dispensa, com laivos de culpa, uma janela do quarto com vista para o horror, e da rapariga polaca da aldeia que distribui maçãs pelos locais de trabalho forçado, numa aparição apenas em modo de vigilância noturna. O ato eticamente superior é observado em segredo.
Subjaz, por fim, a The Zone of Interest o conceito estafado da “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt no julgamento de Adolf Eichmann, o nazi “banal” original, nomeado no filme a propósito da deportação dos judeus húngaros. Estafado não porque já não tenha pertinência, mas por simplificar no discurso público o que a própria filósofa não pretendia. No campo de concentração cruzam-se várias banalidades, consoante variáveis – interesses – que não cabem em dicotomias apetitosas para tentativas de compreensão de fenómenos complexos sob orientação de categorias morais simplistas. O que é apreciável na frieza deste filme – nos últimos anos igualável apenas em Saul fia / O Filho de Saul (László Nemes, 2015) –, é o abandono de convenções patéticas de representação do extermínio de seis milhões de judeus, não o colocando no centro da ação visível. Se é para provocar um determinado sentimento ao espectador, que seja a partir dos pressupostos dialéticos de Hannah Arendt e de uma aridez fragmentária como a da poesia do sobrevivente Paul Celan, e não da tradição catártica instaurada por Spielberg ou Benigni.
A empatia e comoção suscitadas por um filme são efémeras e independentes do devir histórico. Quase oitenta anos depois da libertação de Auschwitz, o mundo comprova-o. O dever de memória tem por isso de superar a propensão para contar histórias empenhadas em explicar o Holocausto sob critérios de verosimilhança. Este filme age segundo esta proposição, apresentando aquilo que, sendo imitação da realidade, é inofensivo para o observador sem conhecimento da barbárie histórica: quadros da vida normal de uma personagem menor e desinteressante. Pode parecer pouco, mas faz mais pela aprendizagem sobre como se exerce a violência política do que todos os livros e filmes populares que esgotam a sua ação narrativa naquele referente histórico.
Assim se aprova a última cena, em que Rudolf Höss desaparece para a escuridão de uma escada, na esperança radicalmente humana de preservar, com a maior das longevidades, uma singela vida no campo.