Airbnb & Nuvens – uma rádio novela é um “palimpsesto”, como lhe chama Luísa Costa Gomes, ao mesmo tempo evocativo de uma forma cultural e artística distante e hoje ausente (a rádio novela) e satírico da portugalidade, com tudo o que de bom, ridículo e mau dela se consegue expor e transformar em texto e teatro.
A simulação que a peça é por definição, estende-se ao que une as personagens, num limbo entre diferentes e fragmentadas narrativas que desembocam em equívocos sobre a linguagem, a ligação desta com a gestualidade e os significados que se entrevêem e escondem em diferentes momentos, tons e expressões. A artificialidade e anacronismo formal das rádio novelas, em que os sons e as imagens eram recriadas pela entoação dos actores e o manejo de objectos para produzir efeitos sonoros, é aproveitado na perfeição pelo elenco, sempre em comunicação e ligados por uma corrente quase palpável, que lhes permite transformar o texto já por si cómico num acto artístico e celebratório, de tal forma que é frequente a dúvida sobre a presença antecipada das gargalhadas partilhadas no texto ou se estas surgem entre o calor e animação constante em palco, propícias ao improviso e à provocação mútua.
A encenação e as movimentações rigorosas em palco contribuem para esse desiderato, libertando o elenco desse ónus, hoje cada vez mais deixado a seu cargo nas peças da autoria mais insuspeita, permitindo-lhes o arbítrio que advém da prática controlada e da previsibilidade das variáveis cénicas. Ou seja, o tom de improviso é fruto do trabalho da equipa, e a exigência do texto, que corre literalmente entre narrativas entrecortadas – “uma espécie de variações (…) sobre a suspeita de um crime, ou uma espécie de chá-das-cinco sobre regras de etiqueta e protocolos de hospitalidade, ou uma historieta passada num elevador de um prédio portuguesmente endividado”, como diz Manuel Tur em entrevista recente – é compensada largamente pela boa disposição contagiante.
Da trama, destaca-se a história rocambolesca da compra de dois elevadores “inteligentes” modernos por um condomínio falido, que depois é obrigado a manter os elevadores e a dívida, numa sinédoque do Portugal que avança de crise em crise. Esta cruza-se com um policial à britânica em formato “whodunnit”, que é apenas aflorado, e múltiplas vozes que vão irrompendo em cena com sinais, presságios e comentários, entre o irónico, o cómico e o pertinaz, com as dinâmicas do teatro radiofónico misturadas com as da comédia britânica.
Noutras mãos seria a receita para o desastre, mas Manuel Tur e o elenco conseguem um número de funambulismo bem sucedido, mantendo a intensidade e qualidade de desempenhos a par com uma aura de alegria e humor, sem resvalar na banalidade. O bónus: a sátira da nosso patriotismo bacoco e do nosso excesso de confiança na capacidade de improviso diante da adversidade, com os resultados a que já nos habituamos.
Uma bem-vinda distracção do ambiente soturno que nos rodeia.
Ficha Técnica
texto • Luísa Costa Gomes
encenação • Manuel Tur
assistência de encenação • Maria Inês Peixoto
interpretação • Diana Sá, Eduardo Breda, João Castro, Pedro Almendra e Teresa Arcanjo
vozes • Alexandrino Fortes, António Parra, Emília Silvestre, Joana Mesquita, Luís Araújo, Mário Santos, Pedro Manana, Raquel Rosmaninho e Tiago Simães.
objecto cénico • Pedro Tudela
espaço cénico • Ana Gormicho
desenho de som e sonoplastia • Joel Azevedo
Jingle • Tiago Simães
desenho de luz • Cárin Geada
figurinos • Anita Gonçalves
execução de figurinos • David Catalán
reflexão crítica e documental • Gil Fesch
registo vídeo • Luís Porto
direção técnica • Zé Diogo Cunha
produção • A Turma
produção administrativa e executiva • Mafalda Bastos e Ludovica Daddi
coprodução • Teatro Virgínia, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, Teatro Nacional São João
dur. aprox. 1h10
M/14
Airbnb & Nuvens passa pela Casa das Artes de Famalicão a 18 de Dezembro e em 2021 pelo Teatro Virgínia e pelo Teatro Aveirense
Foto © Luis Porto
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