Alice no País das Maravilhas é muito mais que um romance infantil. A obra do escritor Charles Lutwidge Dodgson, que usou o pseudónimo de Lewis Carroll para assinar a obra, foi publicada em 1865, muito antes de eclodir a dramaturgia do teatro do absurdo. Não sei se Ionesco ou Pinter leram a Alice ou se este paralelismo com dramaturgos do século XX é nonsense mas, admitindo que o é, não deixa de ser verdade que Alice no País das Maravilhas é uma obra disruptiva.
Como diz, em conversa, Maria João Luís: “Eu era miúda quando li. A primeira memória é da estranheza daquilo. E da sensação de que aquele livro contava mais do que aquela história”. A encenadora do espetáculo, junto com Ricardo Neves-Neves, assume neste espetáculo também a condição de atriz, é narradora e intérprete do Chapeleiro (uma das personagens que participa na cena do chá, cena que é, aliás, das expressões mais fortes dessa rutura com as fronteiras da imaginação) e intuiu, cedo, que Alice atravessava o espaço do real para o desconstruir.
Ricardo Neves-Neves descobriu a obra anos mais tarde, aos 19 anos e reitera a sensação de estranheza com a qual convive de forma prazerosa:
“Lembro-me de ler o livro com essa sensação de felicidade por todo o lado surreal e de absurdo que ele tem. O nonsense mexe muito comigo. E lembro-me perfeitamente da contagem: “dividir um pão por uma faca dá pão com manteiga”.
Assim sendo, o que nos espera no Teatro D. Maria II? Um momento de animação e lirismo infantil? Longe disso. A força motriz do espetáculo é a essência da obra, uma obra respaldada na ironia e no sentido crítico: sim, é a Inglaterra vitoriana que ali vemos, naquele julgamento anedótico em que um rei e uma rainha, do alto do seu poder infame e discricionário, mandam cortar cabeças e julgam sem contradição, forjando prova, condicionando os jurados, inventando crimes à feição do seu despotismo, perante a incredibilidade e indignação de uma criança desperta e incorruptível, Alice, que ousa questionar esse mundo ao contrário.
É essa permanente desconstrução da realidade e das fronteiras do possível, a capacidade de romper com o mundo que captamos, que é levado à cena pelo Teatro do Eléctrico e pelo Teatro da Terra.
Bons atores e boas interpretações, uma encenação irrepreensível e uma orquestra que, do fundo do palco, nos faz perceber que a música é sempre acrescento de valor em qualquer espetáculo, mesmo quando não conseguimos identificar, com clareza, de onde vem o som do saxofone, do trombone, do baixo, da flauta ou do violino. Em boa hora, os músicos vieram agradecer os aplausos, depois de quase duas horas em que, indistintamente, deram brilho à atuação dos atores.
A cena começa com várias Alices e vários coelhos (ou quiçá lebres apressadas): um jogo de espelhos, absolutamente impressionante, que prometia o melhor. E assim foi. Veio o melhor do teatro a fazer o melhor com o texto.
Alice já foi adaptada muitas vezes. Até Tim Burton usou a sua mestria a explorar o grotesco para reinventar Alice. Isso não foi problema. O espetáculo soube reinventar Alice e certamente voltará a fazê-lo em cada dos dias que for levado à cena, com cada um dos espectadores, que verá a sua Alice, dentro das suas fronteiras mais ou menos largas.
Importa dizê-lo, não é só do trabalho dos atores que é feito este espetáculo. A cenografia (Ângela Rocha), os figurinos (Rafaela Mapril), o desenho de luz do Pedro Domingues e o desenho de som e sonoplastia do Sérgio Delgado e o vídeo, da responsabilidade da TEMPER Creative Agency merecem um rasgado elogio. Na verdade, o trabalho e luz e som, verdadeiramente admirável, é o nó górdio que desata, em palco, este queda na toca do coelho e nos leva até à lagarta, que será crisálida, dona do cogumelo que faz crescer e diminuir, ao gato que ri, ao arganaz, ao chapeleiro, ao rato, ao ouriço, ao sapo, ao dodo, ao mocho, aos coelhos, às cartas jardineiras, oprimidas pela repressão da rainha e do rei, à cozinheira, à duquesa, palavrosa, pedante e desinteressante, ao Humpty Dumpty, aos gémeos Tuidledim e Tuidledum, à ovelha e aos criados peixe.
Preparem-se para uma aventura dentro das fronteiras da imaginação da Alice e das vossas.
A peça esteve em cena, na sala Garrett do Teatro D. Maria II, até 6 de janeiro. E, garantidamente, o público exigirá a reposição.
“Poderia dizer-me, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”
“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importa muito para onde”, disse Alice.
“Então não importa muito que caminho tome”, disse o Gato.
No palco, ficou a faltar a resposta, mas talvez o espetáculo seja mesmo isso: o espaço para deixar perguntas e pistas que permitam encontrarmos as nossas respostas, tão corretas como quaisquer outras. Ainda assim, Lewis Carroll terá ditado as que se seguem:
“Contanto que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, à guisa de explicação.
“Oh, isso certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante.”
Por defeito profissional, Joana Neto escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Filipe Ferreira
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