Gus Van Sant, o cineasta do quotidiano e, igualmente, da percepção onírica e desfasada de Elephant, Last Days ou Paranoid Park, o também artista plástico e compositor, andava, há já cerca de 30 anos, com um projecto para uma peça de teatro no bolso. Chegou mesmo a escrever um guião que visava River Phoenix como estrela principal mas que, à morte do actor, perpetuou a sua sina de adiado.
Foi John Romão, director artístico do festival BoCA, que com o seu desafiante convite veio abrir essa caixa de Pandora que ainda mantinha a esperança de encenar uma peça de teatro, revelada a Van Sant, aos 69 anos, sob a forma de um musical. Van Sant foi pegar no projecto de uma vida o “Projecto Warhol” e escreveu, encenou e musicou Andy, uma peça que elucida os primeiros anos do percurso pessoal e artístico (período de 1959 a 1967) desse mago da Pop Art que foi Andy Warhol.
Andy abre com a entrada de Clement Greenberg (o critico de arte) na Leo Castelli´s Gallery, indo ao encontro do artista Jasper Johns. E é logo a partir dos primeiros diálogos que se evidencia, de modo demasiado explicito, o lado didáctico da peça, um aspecto que se perpetua como se de uma longa lição de História de Arte se tratasse; a dedicada à passagem do Simbolismo à Pop Art. Van Sant mostra-nos que, tal como o Expressionismo Abstracto (encabeçado por artistas como Pollock) tinha destruído todas as galerias, art dealers e mercados anteriores, marginalizando toda a cultura que existia até então, também o mundo da Pop Art e o Minimalismo passaram a fazer o mesmo, mostrando que as grandes mudanças de paradigma no mundo da Arte o reconstroem. Trata-se aqui de toda uma nova geração de americanos, um novo movimento (no qual também se expressava o movimento gay e queer) que vai transformando o significado e a prática da Arte na América e a forma como as pessoas passaram a ver o mundo à sua volta. Nova York era a cena do art world e a The Factory de Warhol teve um papel definido nessa transformação.
E é neste contexto que se compreende a preferência de Van Sant por um elenco de jovens actores para esta peça, ajudando-nos à visão desse novo paradigma que se impunha ao propor-nos usufruir da imediatez das suas interpretações (também conseguido pela ausência de densidade dramática e no que isso possa acrescentar de positivo para a compreensão do contexto da expressão artística e da persona de Warhol) onde deve destacar-se a notável e deliciosa interpretação de Helena Caldeira no papel de Edie Sedgwick.
Diogo Fernandes, o actor que interpreta Andy, consegue levar a bom porto, na medida q.b., o misto de vulnerabilidade e de observação atenta e enigmática que pautava a complexidade psicológica de Warhol. Esse Warhol, que nos é primeiro apresentado como Andrew Warhola, seu nome de baptismo, pertencendo a uma família católica da working class, aparece-nos como um rapaz receptivo e sonhador (o que é mostrado na mais bem concebida cena da peça, a da Virgem Maria) que de testemunha fascinada com o que se passava à sua volta (em parte revelado pelo seu encantamento por Truman Capote e pelo que ele representava) vai-se transformando em Andy Warhol, um agente que passa, deliberadamente, a espelhar esse mesmo mundo. Mais do que impôr a sua visão, como um espelho, reflectia e registava a vida; daí aparecer, constantemente, de câmara na mão e se ter aventurado pelo mundo do cinema underground.
A versatilidade dos cenários e da encenação (mudança constante de cenas) concorrem para impor a Andy um ritmo cinematográfico, tão familiar a Van Sant, ainda que não possa constatar-se a mesma fluidez no que à banda sonora diz respeito, soando defasada (demasiado lenta e leve) do ritmo visual da peça, sem nada a acrescentar aos diálogos e à expressão das personagens. No entanto, Andy consegue levantar questões: Como te crias? Como te transformas? Questões a que consegue dar resposta: o que quer que sejas no teu intimo, o que importa é no que te tornas. E ainda nos mostra como a Arte é um bom médium para essa catarse interior que a Pop Art também conseguiu impor.
Andy mantém-se em cena no Teatro Nacional Dona Maria II até 3 de Outubro, de onde seguirá para Roma e Amesterdão.
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FICHA TÉCNICA
coreografia Sónia Baptista
direção técnica Gi Carvalho