“Eu sou a Rehana. O Anjo. Da aldeia de Tall Ghazal, uns trinta quilómetros a sul de Kobane…” Anjo é um monólogo centrado na personagem real (quase mítica, símbolo da resistência aos avanços do Daesh, cuja verdadeira identidade e paradeiro são desconhecidos) Rehana, conhecida como o “Anjo de Kobane”, “que conta a sua história autobiográfica directamente ao público, através da ‘quarta parede’”, como reza a didascália.
Natural desta pequena vila de maioria curda no norte da Síria, sonha ser advogada “como o William Shatner em Boston Legal“, mas o pai, agricultor e habituado a lutar pela sobrevivência no seu palmo de terra, (“Passou seis meses a lutar nas montanhas; e trinta anos a gabar-se disso.”) quer treiná-la para a vida que sabe esperá-la. A escola só depois do treino de tiro com a sua velha espingarda Dragunov. Entra na faculdade de Direito, mas o Daesh invade Kobane, forçando a fuga apressada com a mãe. Começava o infame “Cerco de Kobane”, com milhares de refugiados em fuga para a Turquia. O pai fica para trás “para lutar (…) Pelas árvores da família; as tuas árvores.” Recusa-se a atravessar a fronteira e parte em busca do pai.
Raptada e vendida como escrava sexual, consegue fugir e cruza-se com uma Unidade de Defesa Feminina Curda (YPJ), que a acolhe e onde a sua perícia como atiradora furtiva rapidamente se destaca, vencendo os seus ideais e adiando os sonhos de paz e justiça. “Sou uma pacifista. /Podes não querer lutar contra o Daesh, mas o Daesh está a lutar contra ti. Tu és tudo o que eles odeiam: Ocidental, Liberal, Educada.” Os efeitos deste caminho são devastadores e irreversíveis. “Matei. Sou uma assassina. /De repente é fácil. /Carregar e disparar e carregar e as latas de Orangina caem e caem e eu/matei e sou uma assassina uma vez e outra vez. /… E com cada morte, um pedaço de mim morre também.” Com o fim da inocência, uma guerreira ergue-se entre o pó e os corpos que se vão amontoando na mira da sua espingarda. Reencontra o pai moribundo, num doloroso momento, e a sapiência habitual ressurge: “Para criar uma terra livre de tirania, temos de ser tão cruéis como os próprios tiranos.”
A resistência de Rehana e suas companheiras de armas derrota o Daesh, que pela primeira vez recua, mas há ainda um sacrifício derradeiro a fazer aos deuses do Destino.
Em palco, Teresa Arcanjo surge acompanhada de um simples bidão, tornado muro, árvore, camioneta e tudo o resto, e encarna 16 personagens para além da sua, num desempenho corajoso e pleno de entrega e versatilidade, prejudicado a espaços por uma ineficiente amplificação da sua voz e complementado por um plano de luzes eficiente e minimal. Ángel Fragua encena de forma liberal, deixando o palco gigante à mercê do talento do Anjo e do texto excelente de Henry Naylor, baseado em testemunhos de dezenas de mulheres na mesma situação de Rehana, numa tradução feliz de José Paulo Tavares. Sem truques, músicas dramáticas ou flashes luminosos. Só onomatopeias, timbres de voz emulados, o corpo em convulsão e as emoções à flor da pele. A proximidade com o público é palpável, quase total, não fossem os detalhes já referidos. Incompreensível apenas como esta peça não chegou a mais palcos. A Síria continua a perder os seus anjos, apesar de as notícias os terem esquecido.
Obrigado à “inquieta” Eduarda Freitas pela simpatia e cordialidade.
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Foto © Lino Silva