Antes ainda de a vermos, já ouvimos a guitarra de Anna Calvi, que entra pé ante pé no palco pouco iluminado, munida do instrumento que aponta ao público como se fosse uma arma. Há uma timidez em Anna que a impede de dialogar com o público através da palavra falada; talvez tenha agradecido a quem a veio ver apenas uma vez e, quando a aplaudem, apenas ergue os braços como uma atleta vitoriosa, de cabelo molhado colada à face suada. No entanto, Anna lança-se à palavra cantada e aos riffs violentos de guitarra sem qualquer pudor ou contenção. O alinhamento do concerto prende-se ao alinhamento do último álbum, Hunter, uma espécie de carta de amor aos gender benders deste mundo, cantado num registo mais pessoal do que aquele dos seus álbuns anteriores, onde os sintetizadores e os coros festivos se aliam à sua voz poderosa e à guitarra que se revela como parte integral da construção de cada música, ora rebelde, ora doce, sempre provocadora. Aquando do lançamento do álbum, Calvi escreveu um manifesto sobre a natureza pessoal e íntima de Hunter e a sua desconstrução das dinâmicas tradicionais dos papéis de género através da exploração do potencial do corpo sexual da mulher, abrangendo as esferas feminina e masculina em simultâneo. Os corpos de Hunter, contrariando a tradição masculina, mostram-se agentes sexuais em vez de objetos, numa experimentação sexual onde, à vez, somos presa e caçador. É em canções como “As a Man” e “Don’t Beat the Girl Out of My Boy” que Calvi pratica a tal promessa de “explorar uma sexualidade mais subversiva”, enquanto questiona o aspeto performativo da masculinidade e da feminilidade, lembrando por vezes o mundo das drags de Lou Reed e aquela Holly que pediu boleia pelos Estados Unidos fora, depilou as sobrancelhas pelo caminho, rapou as pernas e de ele passou a ela. O cabelo e a face suadas de Calvi da capa do álbum revelam que esta tarefa de desconstruir a arquitectura deste mundo, que teima em inscrever os corpos sexuais dentro desta matriz identitária normativa, talvez seja um pouco mais difícil do que uma rápida mudança de roupa ou um pequeno procedimento estético.
Se os álbuns de Calvi se apresentam bem produzidos e calculados e, à excepção deste último, contidos e quase asséticos, a Anna que se apresenta em palco é energética e atira-se ao microfone e à guitarra com uma garra reservada às verdadeiras estrelas de rock de antigamente. É um daqueles casos raros em que o concerto supera o produto feito em estúdio. Sempre que uma nova voz surge na cena musical, há uma tendência jornalística para a comparação e Anna Calvi é vítima disso. Se Calvi é a melhor coisa a surgir depois de Patti Smith (de acordo com Brian Eno), teremos de esquecer outras tantas mulheres cantoras que a precedem e que poderiam também ser comparadas a Calvi. Hunter lembra a sua conterrânea PJ Harvey e os seus primeiros álbuns, marcados por uma reclamação da liberdade de sexualidade feminina. A voz aproxima-se dos timbres de Jehnny Beth das Savages, ou de Siouxsie Sioux, a relação simbiótica entre mulher e guitarra lembra ainda a virtuosa St. Vincent. Na verdade, Calvi lembra também Jeff Buckley e os seus vibratos, assim como um Bowie de voz cavernosa e aspeto andrógino ou até Jimi Hendrix, no seu domínio exímio da guitarra. No entanto, tais comparações são, além de paternalistas, redutoras: os setenta minutos que Calvi passou em palco acompanhada de um baterista e de uma teclista multi-instrumental, num enfiamento de canções que se sucederam num ritmo crescente e impetuoso, justificam quer a aprovação da critica ao trabalho de Calvi desde que esta surgiu, quer o entusiasmo com que o público acompanha cada música num coro uníssono.
Tal como a mulher que veste pele e flores em “Hunter”, música que dá nome ao álbum, Calvi apresenta-se em palco confrontacional mas também introspetiva, enquanto o percorre de guitarra em punho, usando ainda o chão como uma espécie de cama, onde seduz o público e recupera energias antes de novo solo desenfreado. Se por vezes o som se torna ensurdecedor, noutras estamos dentro da Red Room de Twin Peaks (Calvi usa uma blusa vermelho-sangue a lembrar um cantor de flamenco que reflete as luzes igualmente vermelhas), levados ao sonho por uma guitarra que embala bem ao estilo de Badalamenti. Ver Anna Calvi ao vivo é como entrar numa dream sequence, em que um tango se sucede a uma bruta canção rock à antiga, onde uma personagem de voz grave e cabelo selvagem nos assusta e atrai em igual medida. A certa altura, estamos olhos nos olhos com a cantora, enquanto esta rasteja palco fora, com a guitarra feita presa moribunda, ainda a respirar distorção. “Don’t you stop me”, canta ela; e ninguém o tentaria.
Mais textos sobre Música AQUI.