Breu total.
Em duas telas negras, transcrições das vozes de crianças que supomos sírias ecoando no teatro, como espectros, durante longos instantes de tempo paralisado, anestesiante. Falam de saudade de uma vida digna, de um bife, dos tios e dos pais, de ir à escola. A nú, a total impotência, de quem ouve e quem fala, perante a banalidade do mal, a inocência possível de quem já viu o pior e sabe ter a vida a prazo. E revolta-se, chora, suplica. Em resposta, mais perguntas, mais exploração emocional. A esperança é uma quimera. A água, a comida, a paz, a família, a escola, a infância foram-se com ela. Sobra Morte, Angústia, Solidão e Raiva.
A iluminação surge lentamente, descobre os resquícios de um apartamento em ruínas. Um sofá velho coberto com uma manta rubra, um frigorífico, uma bacia, um balde, andrajos semelhantes a cobertores, colchões finos e gastos. Sete seres (quatro homens e três mulheres) dispersos, presos entre destroços, físicos e emocionais, com uma cidade em fundo nunca revelada.
Fugindo ao óbvio, é com estes elementos que os bailarinos constroem uma narrativa em convulsão e movimento, com várias coreografias concomitantes em determinados momentos, dividindo a atenção do espectador e assim enriquecendo a composição. A reconstrução possível da humanidade que resta entre sobreviventes e os obstáculos com que se deparam unifica todo o espectáculo. Perante uma existência sem qualquer outro tipo de validação além da resistência à morte, a iteração e o fluxo dos movimentos alimentado pela energia de alguma música ocasional em cena (desde Aphex Twin a Ben Frost, Dahfer Youssef, Gavin Brayers ou Max Richter) ou por um intrínseco estímulo destrutivo, insuflam sentido às almas perdidas. Do desmembramento do ser e da sociedade, desenrolando-se perante os olhos do Mundo, com o seu apogeu no momento em que o bailarino Bruno Alves despeja uma bacia de pedras sobre a cabeça, sobra o pó e a dor quase tangíveis, tal o seu poder cénico e emocional. A inflexibilidade e o poder mais elementar da pedra vs. a nossa fragilidade intrínseca. O sofrimento é também auto-infligido. Qualquer fulgor romântico ou apaixonado é desfeito, mesmo diante da resistência inicial, cedo substituída pela dolência inerte da inutilidade da vontade perante a assertividade do facto consumado. Os corpos inanimados acumulam-se a um canto, para depois se erguerem em silêncio, unidos numa massa informe e esquecida, mas nunca completamente invisível, porque, ao contrário da Vida, a memória não se apaga.
Há breves fogachos de esperança, uma luz indeterminada vinda do alto, para onde se erguem os olhares de todo o grupo. As cabeças baixam-se, ante a constatação de uma nova ilusão de escapismo e resgate. Breves uníssonos quase murmurados, um fugaz sentido de todo, que se esvai num instante, retomada a natural violência dos gestos e dos sons.
As tentativas de reconstrução não cessam, com a recolha e redistribuição rápida e desesperada das pedras pela cena, inútil e breve, com nova catástrofe ou martírio a suceder-se sem aviso. Os derradeiros resquícios de humanidade residem ainda nas rotinas já mecânicas: as mulheres lavam o cabelo discretamente, na escuridão, aparte da cena principal. Partilham a água escassa, único bem essencial que resta, preparando o regresso à batalha do quotidiano. As mãos abruptas sobre a cabeça, numa convulsão reflexa de auto-preservação.
Nenhuma filosofia, retórica ou sequer representação sustenta indefinidamente a crueldade. A finitude da tolerância humana e a teimosa resiliência à evidência da Morte são superlativas perante a desafio da violência. Sentados no silêncio, olhos colados no palco, procuramos um sentido para o absurdo. Conivências, tolerâncias, ineptidões, negligências, oportunismos, inércias soam asquerosas e mesquinhas perante a extinção sistemática de todo um povo. E, no entanto, assistimos coniventes, confortáveis na escuridão, aqui como lá fora.
No final, é reconstruída a cena inicial. Corpos ofegantes, mentes vagueiam. A tendência sádica da História e da estória para a replicação. Esta, isolada do Mundo exterior ao apartamento lúgubre e abandonado, que a assiste e alimenta, recomeça, cruel.
Repentinas, as luzes de sala cegam. Aplausos (?!).
Quanto tempo passou? Quanto mais será preciso para o pesadelo terminar?
Foto ©Paulo Pimenta