Chegado o momento de ler, ou de reler, a produção poética de Fernando Pessoa escrita em inglês, não haverá muitas hipóteses no cardápio das atitudes possíveis. Ou se fica, como sempre, abismado perante a genialidade de um poeta que lá fomos tentando, ao longo dos anos (mais tarde que cedo), fazer por merecer, ou se tenta reagir àquele génio irradiante, que disparava, aparentemente, para onde quisesse. Tente-se a reacção, portanto, com este Antinous e Outros Poemas em Inglês.
Não será de mais repisar aquela qualidade de génio, que era a de Pessoa, sobretudo se tivermos em conta que datam de 1904 os primeiros poemas, agora de novo reunidos, na mais recente edição da sua poesia inglesa (fazendo as contas, o jovem ia ainda fazer 16 anos). A genialidade não está propriamente na valor paralisante da escrita, que apresenta caracteres estilísticos reconhecíveis, alguns traços epocais, de «escola» literária, ou das consequências dela, mas no simples facto (ou facto nada simples) de Pessoa ser um jovem português a escrever em língua inglesa com uma qualidade que não é típica do estrangeiro que ele não deixava de ser. É óbvio que o jovem teve uma cuidada educação inglesa, na colónia inglesa da África do Sul, mas não o é menos o seguinte: à excepção deste, sobrar-nos-ão assim tantos outros exemplos? Teria a família abandonado a língua portuguesa, só por viver imersa numa colónia britânica? Como se explicaria que, passados tão poucos anos, de regresso a Portugal, Fernando Pessoa ingressasse na Faculdade de Letras (ou Curso Superior de Letras, como então se designava) e tivesse repegado o português com a segurança conhecida? Teria, de repente, recuperado o idioma perdido? Não: Pessoa é um poeta bilingue. Seria inútil pretender descobrir se algum dos dois gémeos – a língua portuguesa ou a inglesa – seria mais forte. Mas é inegável que a sintaxe, o fraseado, o controlo tímbrico, a riqueza de inventividade imagética, a magia fonética dos seus versos, não devem pouco à influência mútua dos dois idiomas. Por outro lado, nunca será de mais voltar a chamar a atenção para a transição que o poeta encetou, ou forçou, quando o português se tornou dominante nos seus escritos. Nada disto está ausente desta edição da poesia inglesa de Pessoa. Por um lado, porque a excelente tradução de Luísa Freire torna mais «pessoana» a linguagem do poeta, fá-la mais identificável com o idioma lírico do Pessoa português – «Que está entre o silêncio e o dizer,// Entre nós e a consciência de nós» (p.227) –; por outro, porque a poesia inglesa de Pessoa comunica, naturalmente, com o que o poeta escreveu em português. Quer o ortónimo, quer o diverso heterónimo, encontram aqui pontos de contacto.
Mesmo a produção inicial do Pessoa inglês antecipa já a chamada «dor de pensar» do poeta da maturidade – «Meu simples pensar em vão quis parado/ O correr desta loucura à revelia» (p.31 [poema de 1907]). Os prolongamentos desta poesia hão-de desenhar um paralelo quase exacto com a cisão do eu, que viria a desembocar no grande cisma da explosão heteronímica. Um dos 35 Sonetos falará de um «cortejo-Eu» (p.85); e, no último dos poemas contidos naquele conjunto – «Descuidados, ao mundo o entendimento/ Deixemos, cônscios de que se o fizermos,/ Os astros seguiremos no seu voto/ Presente ao nosso sange e nascimento.» (p.111) –, antecipa-se Ricardo Reis: até no léxico eleito: «Curvado já em vida sob a ideia/ Do plutónico jugo/ Cônscia já da lívida aguardança/ Do caos redivivo.» (Poemas de Ricardo Reis, INCM, 1994, ed. Luiz Fagundes Duarte) Descontada a sintaxe alatinada de Reis, ausente, em grande medida, no Pessoa inglês, está presente a tonalidade de exortação que os poemas do heterónimo demonstram, a submissão a uma certa ideia de necessidade, de fatalidade, no sentido clássico, que a poesia de Ricardo Reis desenvolveria do modo conhecido. De resto, existe um sinal sobremaneira eloquente dessa proximidade no longo poema que dá título a esta recolha. «Antínoo» tem patentes, nos seus versos, a adesão à ambiência clássica, a assimilação do seu sistema de crenças e ética, a reformulação dos seus paradigmas – «os deuses levam a vida que trazem/ E da vida doada a beleza desfazem» (p.117). Mas, nem mesmo vivendo em pleno regime erótico – um erotismo sempre um pouco livresco? –, este poema deixa de trair o peso incalculável do pensamento no cosmos pessoano – «Mesmo enquanto pensa, sendo o prazer mera/ Memória do prazer» (p.121). É certo que, no momento em que o poema se encontra, o Imperador Adriano recorda o amante morto (em suma, pensa sobre ele), mas essa circunstância não diminui a centralidade do verbo «pensar» e, sobretudo, a importância nuclear dessa dimensão, a intelectual, em toda a arte pessoana. Entre os seus infinitos predicados, Pessoa era alguém extraordinariamente consciente da herança clássica. No mesmo «Antínoo», os mais carregados latinismos – como «pulcritude» (p.127) – são, felizmente, menos frequentes do que um «classicismo» muito mais enraizado e com uma disseminação de efeitos bem mais gerais e, acima de tudo, proveitosos. Versos, por exemplo, como «és agora carnal realidade/ Além onde se envelhece e a noite é sem fim» constituem uma possível revisitação (mesmo se oblíqua) de Catulo: «quando a breve luz de vez morrer/ noite perpétua devemos juntos dormir» (Carmina, trad. José Pedro Moreira e André Simões, Cotovia, 2012). De um modo não excessivamente diverso, o primeiro dos Epitáfios – «Passamos e sonhamos. Sorri a terra. Virtude é rara./(…) Da pretendida sageza, a soma nisto presente.» (p.147) – poderá, pelo menos, ecoar Horácio – «A virtude é fugir ao vício, e o princípio da virtude/ é ter-se libertado da ignorância» (Epístolas, Cotovia, 2017, trad. Pedro Braga Falcão). No entanto, e como é por certo natural, os contágios, as transposições não se quedam por aqui. Num poema de título tão significativo quanto «O Rei dos Hiatos», é possível ler: «Entre o nosso dormir e o despertar/ Entre nós e a consciência de nós;/ Reino mudo que o rei estranho foi privar/ Da nossa ideia de tempo e de lugar.» (p.227) Um entre casos possíveis onde estes poemas pessoanos escritos em inglês erguem pontes que ligam, quer à poesia portuguesa do autor – «Entre a arvore e o vel-a/ Onde está o sonho? (…) Entre o que vive e a vida/ Pra que lado corre o rio?» (Mensagem e Poemas Publicados em Vida, INCM, 2018, ed. Luiz Fagundes Duarte) –, quer, ainda, à prosa que compôs – «N’um torpôr lucido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o somno e a vigilia, n’um sonho que é uma sombra de sonhar. Minha attenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.» (Livro do Desasocego, INCM, 2010, ed.Jerónimo Pizarro).
Poeta bilingue, génio de inúmeras facetas, Fernando Pessoa foi tão grandioso (ou praticamente o foi) como o poeta português que mais assombra o cânone da literatura nacional, quanto o foi ao escrever na língua de Shakespeare. Se assim não fosse, o prestigioso Times Literary Supplement não lhe teria concedido a recensão sobre 35 Sonnets e Antinous: a Poem publicada nas suas páginas – honra garantida também pelo Glasgow Herald (conforme lembra Richard Zenith na sua introdução). Se tivermos em conta a consabida insularidade da cultura inglesa, trata-se de um feito digno de notícia e reflexão. O Pessoa inglês está, em suma, longe de constituir uma curiosidade, ou um capítulo menor na biblioteca infinita que é a obra do autor.
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