A tragédia de António e Cleópatra, sobejamente conhecida, encontra na encenação e texto de Tiago Rodrigues (estreada originalmente no D. Maria II em 2015), uma adaptação ao mundo atual, que tanto despreza as grandes narrativas. Perante a ditadura do ligeiro, da leveza, do rápido, é possível fazer pesar nos ombros de uma plateia, em uma hora e vinte minutos, a carga emocional de um amor milenar, recontada tantas e tantas vezes?Vimo-lo no FITEI, no Teatro do Campo Alegre, numa tarde de sábado soalheira, e concluímos que sim.
Se nos ocorre uma palavra para descrever a encenação de Tiago Rodrigues, texto seu com inspiração na versão shakespeareana, é sublime. Enquanto sublime entende-se aquilo que é belo de forma tão transcendental, que o plano da razão e da emoção no contemplador se separam. Esta separação permite o espanto, o respeito, a solidão pela consciência da menoridade do ser físico perante as possibilidades do espírito. Como se atinge isto com um palco quase vazio, um texto minimalista e dois bailarinos feitos atores, em t-shirt e calça de ganga?
Em primeiro lugar, através da linguagem. A hashtaguização da comunicação quotidiana encurta a predisposição para a beleza da sintaxe rococó. Tiago Rodrigues parece querer encaixar a dimensão monumental do amor de António e Cleópatra, tão largo quanto a distância de outrora entre Roma e o Egito, em frases de índole telegráfica, que parecem descrever frivolamente cada gesto, cada passo, cada declaração que testemunha o crescimento do amor entre os dois. Estas fazem lembrar a legendagem das fotografias de paparazzi na imprensa cor-de-rosa, cujo combustível é precisamente o nascimento e fim dos amores: António respira, Cleópatra respira; António coloca a mão em cima da mão de Cleópatra, Cleópatra sorri. A chave não é aqui, portanto, a linguagem per se, mas o que se faz com ela, amputada dos seus pilares majestáticos, como parece ser de regra no meio onde ela mais se nos apresenta hoje em dia – o mundo digital.
Urge, então, perceber o segundo aspeto: o desempenho físico dos admiráveis Sofia Dias e Vítor Roriz, cujos olhares frios parecem seguir,num ecrã ao longe, talvez Richard Burton e Elisabeth Taylor no filme de Mankiewicz, mas sendo, simultaneamente, António e Cleópatra, não os monumentais, mas o casal possível, sem linguagem mais do que rudimentar para exprimir o seu amor. A díade vai pausando na sala de estar ao lado direito, bebendo água, anuindo com cumplicidade quando o recomeço do diálogo se aproxima, manejando o rádio antigo que toca a banda sonora de Burton e Taylor em 1963.
A aproximação do clímax identifica-se pelas características da interação: no princípio, a terceira pessoa, a distância, a frieza, complementadas pela coreografia – sim, chamemos-lhe assim – de braços que parecem refletir que ali estão sombras, uma versão algo mecanizada do que foram António e Cleópatra; depois, o dialogismo assumido com o tratamento na segunda pessoa: Tu, António; Tu, Cleópatra; no fim, as lutas no Mediterrâneo,a realpolitik romana, António casando com Otávia, o ciúme incontrolável da egípcia, a falta de comunicação, as cartas falsas, o falso suicídio, acontecimentos em catadupa que fazem a interação finalmente eclodir na primeira pessoa e extasiar-nos, os contempladores deste espetáculo, perante Sofia e Vítor manejando esplendorosamente os mirabolantes jogos fonéticos imaginados por Tiago Rodrigues,que colocam em palavras a explosão de tanto amor desiludido, de tanta inquietude perante um fim insólito.
A inicialmente aparente menorização da palavra é compensada pela simbiose entre o corpo dos dois, qual espelho rotativo, como os redondos que, pendurados do teto no fundo do palco, refletem a repetição ad eternum desta história; e é completada pelo amor expresso através da tristeza insuportável dos olhares vácuos da parelha, que transportam milhares de encenações que sempre culminaram no suicídio de ambos. Precisamente quando o êxtase é atingido, o encenador inclui, bem a propósito, excertos de “António e Cleópatra” de Shakespeare, mas um Shakespeare só estritamente necessário, como gancho que nos recolhe e puxa até ao último degrau da experiência do sublime, que a crítica a este espetáculo tantas vezes definiu, e repetimo-lo assumidamente, como hipnótica.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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