home Antologia, LITERATURA Aprender a Falar com as Plantas – Marta Orriols (D. Quixote, 2020)

Aprender a Falar com as Plantas – Marta Orriols (D. Quixote, 2020)

O processo de superação de uma perda. A sobrevivência. É este o cerne de Aprender a Falar com as Plantas, romance da escritora catalã Marta Orriols, editado em Portugal pela D. Quixote em 2019. “Esquecer devia ser um processo natural. Devia acontecer assim que tomamos a decisão de fazer com que alguma coisa saia da lembrança. Esquecer devia acontecer imediatamente, caso contrário recordar passa a ser uma degradação, um acto de resistência. Não quero esquecê-lo. Quero parar de filosofar, de repuxar os cabelos partir uma jarra contra o chão para ficar em fanicos, esconder-me debaixo da almofada, quero que alguém que não o meu pai me convide para jantar, quero voltar a viver como dantes e, numa noite qualquer, borrifar sobre mim mesma o perfume da vaidade. É isto que quero, só isto, a contradição de ser capaz de avançar para recuperar tudo o que deixei para trás.”
Escrito em catalão, língua materna da autora, o romance conta a história de Paula Cid, neonatologista de quarenta e poucos anos, pouco emotiva e reservada, criada por um pai prematuramente viúvo, que é atingida de repente “por duas balas”: o seu companheiro de muitos anos, Mauro, morre de forma repentina num acidente, depois de, horas antes, lhe ter dito que havia outra mulher na sua vida e ia sair de casa. A história parte do impacto da morte e enterro de um grande amor: “Quem herda um morto com o acréscimo de uma infidelidade sabe coisas que os outros ignorarão sempre, como a impossível regulação da calma”.
Ao longo do romance, escrito na primeira pessoa com autenticidade, desembaraço e atenção aos detalhes quotidianos (determinantes catalisadores de todas as tragédias), somos conduzidos pela protagonista, que lida com a tristeza infinita de ter perdido dramaticamente em ente querido para a morte mas que anteriormente já o perdera para uma nova vida. E ainda que, enquanto médica, estivesse habituada a enfrentar a ténue fronteira entre a vida e a morte, nada a preparou para lidar com esta dupla perda.
A prosa finamente cortada de Orriols é infundida com emoções fortes, às vezes de uma franqueza impressionante, reconhecendo a coexistência do pesar com a raiva, o desejo e o alívio verdadeiro. A vida de Paula é dividida em duas: a sua auto-imagem e o seu modo de estar no mundo são irrevogavelmente alterados pela morte de Mauro, forçando-a a lidar com o torpor, a saudade, a paixão, a solidão, o seu relacionamento em evolução com o pai viúvo, as expectativas das outras pessoas e, sobretudo, com ela própria.
Fazendo frequente uso da analepse, a autora interrompe em vários momentos a narrativa com recordações do tempo em que a protagonista, ainda muito jovem, perdeu a sua mãe. O livro expõe de forma exemplar todo o processo de luto de Paula: a aversão ao vocabulário piedoso dos outros, as saudades, os constantes “porquês”e “e agora?”, o sexo de vingança, as memórias que a apanham à traição (um bilhete de cinema, os óculos cor “Havana escuro”, o terraço de plantas de que ele cuidava). “Ignorava que por muito que me esforçasse e por mais implacável que fosse a exterminar-lhe o rasto, ele habitaria sempre em lugares inesperados: na dor espontânea de o confundir com alguém que vira na mesma esquina que acabo de virar ou na maneira agitada de um orador subir os óculos em pleno debate televisivo, um gesto parecido com o dele. O raio de influência do Mauro estendia-se por uma teia resistente e decidia a recordar-me que ele viveu quarenta e três anos, muitos dos quais ao meu lado, dentro deste espaço a que chamamos casa”.
Mas, contrariamente ao que possa parecer, não é um livro sobre o luto. Como disse a autora em recente entrevista, aquando da sua participação no festival Correntes d’Escritas, da Póvoa de Varzim: “Gosto de pensar que é um romance mais sobre a vida do que sobre a morte. No fundo, eu acabei por compreender que de algum modo a morte é algo vital, está aí, faz parte da vida.”
No romance reflecte também sobre o ritmo frenético da vida que temos, sobretudo no Ocidente, esta obsessão por não parar, continuar sempre numa espécie de “indústria da felicidade” que, perante uma perda profunda, nos insta e arrasta a voltar a uma normalidade socialmente tabelada.
Na mesma entrevista, em que confessa a perda de um grande amor – o marido – num acidente de avião, facto que a terá impulsionado à escrita deste romance, sublinha:“é importante reivindicar este parêntesis e este sentimento de tristeza, que muitas vezes classificamos como algo negativo. A tristeza é uma emoção positiva. Ás vezes é importante estarmos nessa tristeza para nos compreendermos e conseguir voltar a começar de novo.”
Manifesto contra os que têm pressa em erradicar a tristeza, Aprender a Falar com as Plantas tem uma espécie de lema subjacente: “As espécies que se adaptam às mudanças, são as que sobrevivem”. E a todas as mudanças, não apenas às positivas. Será esse o segredo do êxito. Aprender a adaptarmo-nos às mudanças para as quais ninguém nos treina: as perdas e o desamor.

Marta Orriols vive e trabalha em Barcelona. É historiadora de arte e argumentista. Tem um blog, No puc dormir (Não consigo dormir), e ocasionalmente colabora com várias revistas e jornais. Iniciou sua carreira com “Lumen con Anatom a de las Distancias Cortas”, um conjunto de contos recebido calorosamente em 2016. Em menos de um mês, estava entre os livros mais vendidos, era uma das leituras recomendadas para o Natal de 2016 e a revista Granta escolheu um dos contos para sua edição em espanhol. Aprender a Conversar com as Plantas é seu primeiro romance.

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