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Arte Poética – Paul Celan (Cotovia, 2017)

Arte Poética- O Meridiano e outros textos, é uma antologia que reúne a quase integralidade da prosa de Paul Celan, reeditada agora pela editora Cotovia. Traduzida por João Barrento, que também escreve as notas e o posfácio desta reedição, esta pequena coleção de textos é fundamental para compreender a evolução da poesia de Celan, e inclui alguns dos principais enunciados críticos sobre a natureza da poesia, produzidos na segunda metade do século XX.
Depois de testemunhar os horrores das tragédias do século XX, Celan considera que a poesia tem, necessariamente, de se autoquestionar. A sua obra poética é a expressão plena deste testemunho histórico, e o próprio argumenta que a sua poesia constitui a culminação de uma tradição moderna, de uma linguagem poética mais exigente e renitente. Segundo o poeta, a Europa passou por tempos difíceis, pela privação e pela destruição, e a linguagem poética tem de incorporar esses elementos para que se exprima de uma forma válida. Celan integrou esta tensão na sua poesia, usando-a como uma fonte de experimentação profunda da sua linguagem poética e da própria língua alemã.

“A poesia alemã segue, julgo eu, caminhos diferentes dos da francesa. Trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais problemático, por mais que actualize a tradução em que se insere, ela já não consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela. A sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do “belo”, tenta ser verdadeira” (página 29)

Durante a sua vida, Celan recusou comentar os seus próprios poemas, quer em entrevistas ou por escrito. Por conseguinte, os discursos feitos pelo poeta em 1958 e em 1960, na aceitação de importantes prémios literários, são cruciais para compreender a sua obra poética. No seu enunciado programático mais longo, O Merididano, discurso de aceitação do prémio Georg Büchner em 1960, discute visão da arte poética e formula alguns dos seus prognósticos para o futuro desta.
Celan acredita que o autor alemão do século XIX, que deu o nome ao mais importante prémio literário de literatura alemã, articulou algumas das suas próprias convicções estéticas. Este discurso é influenciado pela peça dramática A Morte de Danton, do próprio Büchner, e adopta o tema da Revolução Francesa. Partindo desta obra, Celan faz a distinção entre arte e poesia, “Kunst” e “Dichtung” respectivamente, sendo que arte tem a conotação negativa de ser “artificial”, “teatral” e “inautêntica”, uma espécie de jogo de marionetas, enquanto a poesia tem a valência positiva de um “encontro” autêntico com o humano. Celan interroga-se também sobre a natureza da própria poesia, que considera ser uma atividade de permanente evolução, um caminhar contínuo em paralelo com a existência humana.

A sua arte passa por tentar intersectar activamente ética com a estética na poesia moderna. Para Celan não pode haver poesia pura, nem poesia incondicional, e apesar de não colocar restrições à sua liberdade lírica, nunca considera que a poesia deva ser autónoma de todas as grandes questões humanas. Em particular, é contrário à poesia “absoluta” de Stéphane Mallarmé e seus discípulos, que permanece no seu próprio domínio, sempre segura de si, sem se preocupar com a influência de considerações sociais e históricas na sua linguagem. Ao invés, a poética de Celan questiona radicalmente a natureza da linguagem poética, que considera necessitar de voltar a si própria, às suas próprias fundações, para poder continuar a existir e a ser lida.

“Por outras palavras, e deixando algumas coisas de lados: podemos nós, como agora acontece um pouco por toda a parte, partir do principio de que a arte é algo dado e um pressuposto incondicional? Devemos, nós para colocar a questão de forma bem concreta, acima de tudo, digamos, levar às suas últimas consequências o pensamento de Mallarmé? ” (página 50)

Assim, para Celan todas as definições de um “poema absoluto”, ou de uma poesia que tenta ser completamente autónoma de considerações sociais e históricas, não poderiam existir. Essa poesia ofereceria uma falsa identidade absoluta de linguagem e de identidade, esquecendo que a poesia é sempre escrita sob o ângulo particular de uma existência, que abraça todas as contradições e oferece o absurdo que reina nas vidas humanas. Tal como a personagem Camille do drama de Büchner, a poesia é arte que afirma a vida humana e não renega o seu absurdo:

“ A homenagem é aqui a algo que testemunha a presença do humano- à majestade do absurdo. E isto, minhas Senhoras e meus Senhores, não tem nome certo nem fixo, mas julgo que é… a poesia” (página 46).

A Alocução na entrega do Prémio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen (1958), é outro discurso crucial do poeta de língua alemã, em que sugere que a poesia é uma forma inerentemente dialógica da linguagem literária. Nesse discurso, procurando claramente a controvérsia em relação a definições mais tradicionais de poesia, Celan classifica o poema como uma espécie de “mensagem numa garrafa”, uma tentativa de comunicação com um “outro”. Isto significa que a poesia moderna, em particular a escrita após a Segunda Guerra Mundial, possuía um carácter de fragilidade e de resiliência, e toda a tentativa de escrita poética era como uma invocação e, para ser válida, nunca poderia ser uma arte fechada em si mesma.
Igualmente importante, é a definição proposta por Celan de que o poema deve ter em atenção os momentos históricos dramáticos, momentos esses em que o poeta necessita de abraçar a escuridão dos seus tempos para poder continuar a produzir a sua arte. Nos seus discursos, Celan não deixa de reflectir sobre a dificuldade da poesia moderna, particularmente o seu vocabulário.

“Senhoras e senhores, é muito comum hoje queixarem-se obre a obscuridade da poesia: Esta obscuridade, não é congénita, mas foi deixada na poesia pela distância, devido à sua própria escrita e devido ao encontro.” (página 53).

A perspectiva da poesia como “diálogo poético”, pode ser entendida como a tentativa de definir a linguagem poética como uma partilha de uma experiência interpessoal. Ao mesmo tempo, a estranheza da natureza do poema não fica alojada num objeto comunicativo, mas é, pelo contrário, o próprio elemento que permite um contacto responsivo com o outro. Assim, para Celan, apesar da poesia moderna manifestar uma tendência para a condensação do vocabulário, e mesmo para o silêncio, possui igualmente um forte impulso comunicativo.
O poema, diz Celan, precisa do “outro” e “o poema é uma figura para o qual ele se dirige”. (página 49). Este apelo do “outro” é influenciado nomeadamente pela filosofia de Emmanuel Lévinas, e para Celan todo a escrita poética é um falar para alguém, um discurso dirigido a alguém ou a algo, em que o “eu” solitário não chega. Celan nunca deixou de enfatizar que o destino do poema é um “tu”, uma segunda pessoa para quem qualquer coisa deve ter significado, algo que está igualmente patente ao longo da sua obra poética.

“Mas penso- e esta ideia dificilmente vos poderá surpreender agora-, penso que desde sempre uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia – não, esta palavra já não a posso usar agora- é a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe em nome de um radicalmente Outro. “ (página 55)

Esta forma de conversação que se estabelece na arte poética, pode por vezes ser desesperada. Um poema é assim um oficio humano por excelência, que envolve uma relação de proximidade, um gesto que avança necessariamente para o outro:

“Ofício- é coisa das mãos. E estas mãos, por outro lado, só pertencem a um indivíduo, isto é, a um único ser mortal que com a sua voz e o seu silêncio busca um caminho. Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.” (página 66).

Por defeito profissional, Jorge Ferreirinha escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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