Nos doze contos que compõem As Coisas Que Perdemos no Fogo, Mariana Enriquez põe ao serviço da escrita princípios como fantástico, sobrenatural e, num quadrante distante, naturalismo. Que a escritora abarque tão admiravelmente esse inconciliável já deve ser tido por indício da sua força expressiva e da segurança da sua arte.
Talvez não se devesse exagerar a prevalência do fantástico a propósito deste livro. Quando faz a sua aparição, esse modo decorre quase sempre de outras exigências. Por exemplo, num conto como «Os Anos Intoxicados», por certo um dos mais elevados cumes desta recolha, toda a fantasmagoria advém do alucinatório que flui ao longo desse soberbo relato de afundamento e desmedida, à medida que a droga vai preenchendo os dias e os corpos das personagens. Noutros contos, a marca fantástica é um exacerbar, extrapolação transbordante de um trilho que é, de outras formas, razoavelmente realista nas exposições da narrativa, como na composição de caracteres e suas acções. Em certos destes contos, a fuga ao natural desprende-se de manifestações do costume e da tradição. É assim em «Teia de Aranha», onde o trio nuclear de personagens se encontra de viagem a um Paraguai fronteiriço e delapidado. É nessa espécie de lugar de ninguém que as figuras do drama se alojam numa precária unidade hoteleira, onde extenuados camionistas de passagem repetem histórias de assombrações e outros insólitos. Aí, contos populares mesclam-se no tecido dos mitos urbanos, e ambos exigem a criatura sobrenatural, a realidade paralela, a inverosimilhança. Tudo isso a capacíssima escrita de Mariana Enriquez manobra como um piloto altivo e silencioso em navio prestes a soçobrar, mas que singra incólume entre mores perigos. A posição, portanto, parece ser sempre mais «etnográfica» do que imersa, sem rumo, no mar revoltoso do fantástico. Presenças como a bruxaria muito mais vezes surgem, aparentemente, como decorrências de uma localização, uma leitura socialmente integrada num quadro específico de referências e hábitos, do que em obediência a uma gramática ou estética.
O olhar de Mariana Enriquez parte sempre, ou pelo menos nunca abdica, de um posicionamento realista. O verismo com que descreve os resultados palpáveis da toxicodependência não deixa dúvidas – «Os agarrados cheiram a borracha quente, a fábrica tóxica, a água contaminada, a morte química.» (p.34) Esta escrita revela-se, por outro lado, implacável, na atenção que presta à adversidade, que pode ir dos acidentes da vida numa cidade em polvorosa à inclemência do clima – «ia à aldeia no Verão, quando o calor na capital atingia os cinquenta graus e não era possível dormir a sesta e só se tinha vontade de morrer» (p.39) A atenção da autora fixa-se de forma especialmente certeira na geografia resvaladiça do espaço urbano. As mudanças na cidade, dolorosamente sensíveis nesse corpo em constante dinâmica, são uma das incidências mais revisitadas por estes contos – «As crianças brincavam na rua até tarde lá no bairro. Agora é um bairro pobre e perigoso, as pessoas não saem, têm medo de ser roubadas, têm medo dos adolescentes que bebem vinho na rua e às vezes desatam aos tiros.» (p.77) De tal forma assim é, que a narrativa chega a torcer a cronologia, antecipando as duras metamorfoses do tecido urbano, reforçando-as, ao mesmo tempo que as projecta como factos inevitáveis do porvir – «Dali a alguns anos, as casas como a dela – sentia que era sua – seriam compradas e demolidas, e depois substituídas por torres: o bairro ainda não estava na moda, mas era uma questão de tempo.» (p.137) Porque é, precisamente, uma questão de tempo a assombração que paira sobre este trecho. A mudança como fatalidade e como punição por um crime misterioso e obscuro, ilocalizável.
Operando uma focagem de maior pormenor, que desce ao concretíssimo lugar habitado, Mariana Enriquez lembra a portuguesa Ana Teresa Pereira (à qual a fantasmagoria, de resto, seria tudo menos estranha), nesse seu interesse pela casa. Num conto como «A Casa da Adela», a importância do espaço doméstico como lugar de introspecção e de fantasmagoria retoma o que sucedia no primeiro conto, «O Rapaz Sujo», onde a narradora vai ocupar uma velha mansão de família cujos apelos ninguém no agregado, salvo ela, consegue entender. Um local que apura a idiossincrasia, e onde a narradora se descreve como «precisa e audaz, acordada» (p.11). Alguém lhe chamará, volvidos alguns (a)casos da narrativa, «uma esquisitóide, a condessa mórbida no palácio da rua Virreyes» (p.24). Mas a casa é também a sede de inevitáveis assombrações. Acontece, porém, que essas movimentações espectrais não o são propriamente. Ou não se circunscrevem a esse plano. São, além do mais (ou sobretudo?) alguns dos pontos em que a escrita da autora mais consegue criar excelentes momentos de crispação e densidade narrativa – “Naquele jardim havia uma seca infernal e ao mesmo tempo era Inverno. E a casa zumbia, zumbia como um mosquito rouco, como um mosquito gordo. Vibrava. (…) a casa era má e não continha nenhum ladrão, mas um bicho trémulo, que escondia qualquer coisa que não devia sair de lá.” (p.74) A noção de movimento e intensidade que este trecho imprime àquele domínio constrói-se como um pequeno edifício de um horror que talvez se torne ainda mais frisante pela modelagem realista que o apresenta.
Em contraponto com a posição realista de Mariana Enriquez está, contudo, o seu manejo seguríssimo daquelas zonas da existência e da psique em que o real não é já uma âncora suficiente. «O Pátio do Vizinho» é, porventura, o exemplo mais gritante dessa capacidade, que a autora tão amplamente demonstra, de situar num real verosímil o mais implausível dos horrores. É necessário garantir, na prática, muita firmeza no esticar das telas que sustentam a pintura eficaz do pesadelo. Porque, como se lê na conclusão desse conto, «[n]os sonhos não se sente dor» (p.158). Um momento em que a autora desfaz, eviscera, quase literalmente, os mecanismos vitais do que vinha narrando – uma criatura nas orlas sanguinolentas do humano, prisioneiro crudelíssimo de um não menos cruel cativeiro –, no que demonstra a segurança que lhe permite expor o esqueleto, os órgãos, todo o corpo por si criado, sem nada deitar a perder. Um vigor construtivo e artístico que lhe possibilita, em paralelo, encetar a rapsódia mórbida do conto «Fim de Ano», com seus rituais de automutilação levantados num contraponto impecável com o cenário social – o qual circunda o terrífico do conto como uma outra mordaça torturadora. O funéreo é motivo de exaltação, de golpeio de uma sensualidade malsã, mas a escrita impede o excesso explicativo, a impertinência do estilo, a sobrevalorização do efeito facilitista. A consciência do labor literário impedi-lo-ia, de resto. E essa consciencialização possui reflexos tangíveis na narrativa. Por exemplo, Pablo, um guia turístico em passeios que percorrem o trilho de famosos assassínios, tem um estranho prazer nas barbaridades que relata. Alimenta preferências, sente a volúpia das narrações que leva a cabo. É um dos avatares mais exímios do narrador que, ao longo de As Coisas, vão tomando forma. Um simulacro do escritor incrustado na narrativa.
Estes contos de Mariana Enriquez manifestam de forma notável a vida em pleno regime carnívoro, em registo predatório, como é o da juventude das suas mais importantes personagens – «o namorado da Andrea, o da carrinha, já não fazia parte das nossas vidas, mas havia outro rapaz, o irmão da Paula, que já pegava no carro do pai» (p.56). São ficções que registam, sem cedências, a volatilidade e excessiva ligeireza destas existências, a mais cruel simplificação que elas acarretam, numa espécie de “finalismo” que é como uma filosofia implícita, instintiva, sanguínea, que consistisse em fazer tudo por um objectivo difuso e impreciso de cumprir desejos enterrados no mistério de cada um.
As Coisas Que Perdemos no Fogo é obra de uma autora em plena utilização dos seus poderes de escrita. Neste livro, Mariana Enriquez contrabalança, de uma forma que não há como deixar de louvar, uma abordagem que assenta raízes no mundo natural, mas que deriva para o desconhecido como se respondesse a uma necessidade. Por um excesso de real que desagua no supernatural, ou por uma falta de sustentação daquele mesmo real que se afunda nos limites, nas zonas obscuras do desconhecido. Lá onde esta autora gosta de fazer da solidez do concreto o mais permeável ao aterrador oculto.
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