home Didascálias, TEATRO As Criadas – Blackbox da PAC (Guimarães), 29/04/2017

As Criadas – Blackbox da PAC (Guimarães), 29/04/2017

Estreada no longínquo ano de 1947, As Criadas foi a primeira peça tornada pública do dramaturgo, poeta e escritor Jean Genet .
Estruturada num só acto, em cena encontramos Solange (interpretada por Beatriz Batarda – mais velha, experiente e contida – pelo menos inicialmente…) e Clara (Sara Carinhas – ingénua, precipitada, assustadiça), as criadas do título, irmãs e intimas numa extensão que supera todas as expectativas.
A outra personagem é a Senhora (Luisa Cruz), que surge em cena apenas na 2ª metade da peça.
Nesta abordagem inovadora de Marco Martins, baseada na tradução desempoeirada de Matilde Campilho, a peça é reconfigurada e subvertida, mais no sentido de uma purificação, do que da tão pós-modernista (e gasta) fragmentação.
O espaço cénico criado na Blackbox da Plataforma das Artes e Criatividade de Guimarães é um simples quadrado de chão negro, delimitado por uma fina barreira à altura dos joelhos, espelhada na face interior. Por cima, dezenas de luzes fluorescentes projectam uma luz branca e fria sobre o negrume do cenário e da acção (trabalho fantástico de Nuno Meira), que cedo se anuncia brutal.
À volta do claustrofóbico recinto, simulação de cela ou ringue, é disposto o público, à distância de um braço estendido, confrontado com o olhar das actrizes desde o primeiro instante.
O início da peça é desconcertante. Com ambas as actrizes deitadas no chão – Sara Carinhas de olhos fechados e Beatriz Batarda encarando-nos logo à chegada – instalado o público e o silêncio, desencadeia-se o ritual inaugural da noite.
Carinhas mantém-se quieta e Batarda ergue-se para desenhar no chão o seu contorno a giz. Em seguida, o gesto repete-se no sentido inverso. O desenlace desvendado ainda antes do início, num ambiente de verdadeira morgue, anula a clássica tensão dramática e a instala a ideia de que tudo é possível.
Marco Martins, aquando da estreia no Teatro Nacional D. Maria II, revelou algumas das directrizes que guiaram a sua visão: “Nesta encenação, são as próprias atrizes que criam o seu espaço cénico. O texto também nos fala disso mesmo, duas irmãs que todas as noites encenam a tentativa de matar a senhora, além do facto de as atrizes, elas próprias, terem também um percurso [paralelo ao da representação] como encenadoras (…) Este é um texto de atores, ou seja, é uma descoberta do próprio ator que conduz à descoberta da própria personagem”.
Cedo este caminho é legitimado, na voz da actriz Luisa Cruz. Sentada num canto, lê calmamente a carta de Genet a Jean-Jacques Pauvert (editor famoso de gigantes como Sade e amigo do escritor) entitulada “Comment Jouer «Les Bonnes»” (como representar “As Criadas”).
A ideia transversal aos trechos escolhidos da carta é a de devolver a representação teatral à integridade perdida, contrariar a actuação maneirista num Teatro entretanto transformado em feira de vaidades de actores e dramaturgos, desfile de simbolismos formais despidos de real sentido, feito para um público burguês e acomodado, que não compreende o que vê em palco.
Depois de afastar qualquer intento panfletário ou político, às actrizes deixa instruções complexas e amiúde contraditórias, uma mescla de discrição, ternura, desfaçatez, raiva, podridão e beleza, tudo temperado pelo instinto de saber distinguir quais as “passagens «representadas» e as passagens sinceras” e fazer com que o público assim as entenda.
Mas é no parágrafo final da carta que Marco Martins mais se inspira para a sua criação, levando-o à letra. “…antes do início da peça as três actrizes vêm a cena e acordam, aos olhos dos espectadores, sobre os recantos a que chamarão: cama, janela, guarda-fatos, porta, toucador, etc. Depois desaparecem, para reaparecerem em seguida pela ordem atribuída pelo autor.”
A peça “verdadeira” começa exactamente assim, após o que parece ser um ensaio dos últimos detalhes.
As actrizes desenham e identificam todo os adereços do cenário – o quarto da Senhora – e “ensaiam” as primeiras falas, com as respectivas didascálias.
Depois de ocultas, pelas luzes que se apagam totalmente, reaparecem banhadas de luz e a peça começa “de verdade”.

As duas irmãs dão início à “Cerimónia”, o jogo perverso e demencial que nunca conseguem terminar antes do toque do despertador anunciar o regresso da patroa e da humilhação da rotina. A fantasia em que se libertam do jugo pesado a que a vida e o destino as submeteram, e a Senhora é a raíz de todos os seus revezes.
Alternam na personificação do ente que as humilha e subjuga, envergando os seus vestidos, jóias e maquilhagem, numa torrente desesperada de desejos reprimidos, dominação e atracção, de desvio e repulsa, tortura física e psicológica, em que identidades se mesclam e alternam a uma velocidade estonteante.
A Senhora, depois de vilipendiada, é admirada e desejada, na sua vileza e promiscuidade sexual.
Um plano para a matar e prender o seu amante parece poder realizar-se em pleno, faltando levá-lo às últimas consequências, dar o passo derradeiro para o Fim.
Nesta noite que testemunhamos, decidem terminar o jogo, custe o que custar.
“…estas criadas são monstros, como nós mesmos quando nelas nos revemos aqui e acolá”, diz-nos Genet na citada carta.
Numa cena chave, quando Solange força Clara a encarar o espelho (invisível), é em nós que se vê reflectida e inevitavelmente nós nela. Colocada perante esta “imagem”, contorce-se de solidão e vergonha, frustrada por uma vida desperdiçada e pela incapacidade crónica de eliminar a sua opressora.
Beatriz Batarda é pura fisicalidade e força, os músculos tensos em cada palavra cuspida. A sua arrebatadora Solange toma os dados viciados desta simulação de vida e decide destruí-los da única forma que tem ao alcance: a violência. A Clara de Sara Carinhas é o lado suave desta cumplicidade inseparável, selada pelo segredo brutal que implode convenções sociais, cénicas e dramáticas, para construir uma realidade exclusiva e revolucionária.
Dois desempenhos soberbos, com claro destaque para a surreal Solange que Beatriz Batarda faz sua. A fluidez com que passa da “Cerimónia” para as “passagens sinceras”, em que a criada procura reencontrar-se, é prodigiosa, a concretização do sonho de Genet para as suas “Criadas” na sua integralidade.
A fúria com que devora a frágil Clara é o poderoso e amoral antídoto (e simultâneamente a confirmação) para a anulação total em que se vê aprisionada. O único testemunho da sua vida é a forma como decide deixá-la e consigo levar tudo o que a identifica.
“As Criadas” é a noite essencial de duas vidas em suspensão. Olhamos e ouvimos, e desta vez somos literalmente vistos, surpresos ao encontrar diante de nós o lado negro que temos por obsceno e inconfessável.
A crueldade insana destas Criadas é espoletada pelo desejo avassalador de superarem a sua triste circunstância. Genet não as julga e fala do que conhece para contar a sua história: a existência limitada à prisão de quatro paredes e o irreversível efeito desta tortura.
“Enquanto criava a peça, um crítico teatral notava que as verdadeiras criadas não falam como as da minha peça: que sabem vocês? Eu alego o contrário, porque se fosse criada falaria como elas. Em certas noites./Porque as Criadas só falam assim em certas noites: é preciso surpreendê-las, quer seja na sua solidão, quer na de cada um de nós.”
Sozinhos, no nosso lugar, deparamo-nos com o melhor que o Teatro ainda tem para nos oferecer: a pureza da condição humana em todo o seu espectro, sem censuras ou reservas, servida de bandeja por um texto único e actuações irrepreensíveis.
A ver, por esse Portugal fora. Ainda restam três apresentações: 5 Maio no Teatro Municipal Vila Real, 13 Maio no Centro Cultural Gil Vicente, Sardoal e 26 Maio no Teatro Municipal Baltazar Dias, Funchal.

P.S.: Para tornar toda a peça ainda mais memorável, alguns momentos são acompanhados de música. Fizemos o trabalho de casa e descobrimos os temas, que reunimos nesta playlist.

Foto: ©Filipe Ferreira

A tradução da carta de Genet é nossa, do original francês.

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