Jean Genet (1910-1986) teve o dom de deixar em toda a sua obra o homem que foi, algo particularmente penoso se atendermos à sua biografia.
Dado para adopção com meses, foi recolhido por uma família que o dotou de uma educação católica, com a tranquilidade e segurança possível da sua condição humilde. Bom aluno na infância, nada faria prever o seu futuro. Depois de passar por outra família adoptiva, altura em que experimentara já a pequena criminalidade, foi preso numa colónia penal, de que saiu apenas aos 18 anos para ingressar na Legião Estrangeira.
Depois de ser dispensado sem honras, por conduta imoral, viajou pela Europa, vivendo do que conseguia pelos mais diversos meios, até ao seu regresso a Paris, em 1937.
Os seus romances vivem desta história acidentada, colada a si como uma segunda pele. A quem o lê ou vê representado em palco, fica a sensação errónea de se tratar de um dramaturgo de outros tempos, sem nunca saber precisar a razão para esse facto. Talvez o tom dos seus diálogos, rápidos e acutilantes, pejados de insinuações e segundos sentidos, versando sobre pulsões com uma linguagem simultaneamente clara e hermética, como se escutássemos uma conversa alheia de cujo contexto desconhecemos os reais contornos. Talvez as personagens que escolhe retratar (no caso concreto de As Criadas, duas empregadas domésticas e a sua patroa), ou os próprios mecanismos intelectuais instintivamente defensivos do próprio espectador, perante um espelho límpido, reflectindo os recantos mais negros e inconfessáveis da nossa psique.
Em pleno século XXI, Genet chega-nos coberto por um manto diáfano de quase santidade, de que poucos podem gabar-se. Para tal, foram decisivos, entre alguns outros, três poderosos agentes culturais do séc. XX: Jean-Paul Sartre, Jean Cocteau e George Bataille.
O monumento literário que Jean-Paul Sartre lhe ergueu – Saint Genet, Comédien et Martyr (São Genet, Actor e Mártir) (Gallimard, 1952) – previsto como um prefácio à edição da sua obra completa pela Gallimard, rapidamente se tornou livro de fôlego.
Fascinado por ter encontrado a sua “musa”, o filósofo discorre sobre o destino libertário que sempre rodeou a sua existência, encaixando-o na perfeição na mundividência existencialista. Ao mesmo tempo, encarcera-o num verdadeiro mausoléu, desenhando-lhe uma perfeita mitologia autofágica, que se alimenta da máscara que Genet criou para se apresentar ao Mundo, enquanto esquarteja a sua vida em três fases bem distintas (ou “metamorfoses”, como lhe chama): o Ladrão da infância/juventude, que conhece o Mal na primeira pessoa, o Esteta e o Escritor consagrado, na fase final.
A Jean Cocteau é creditada a façanha de ter “descoberto” Genet em Paris, carteirista de rua, com O Condenado à Morte publicado a expensas próprias e Nossa Senhora das Flores já escrito, e lhe disse: “Pára de roubar, que és mau ladrão e ainda te prendem. Mas és bom escritor.”. Na realidade, foi Genet que o procurou, aquando do seu regresso a Paris, em busca de aprovação e protecção. Em 1949, perante a iminência de uma condenação a prisão perpétua por acumulação de penas anteriores, foi Cocteau, juntamente com Sartre, Picasso e dezenas de outros intelectuais, que intercedeu junto do governo francês pelo seu perdão. Genet escapou à cela até ao fim dos seus dias.
George Bataille discorre sobre a cumplicidade do dramaturgo com o mal, na sua obra A Literatura e o Mal, em que conclui, muito resumidamente, que a transgressão, pela aceitação do Mal e a “violação do interdito” (imposto pela Lei para escaparmos à pura animalidade), deixaram a arte de Genet encerrada em si mesma, numa solidão da qual nunca se libertou, ao mesmo tempo que, em sentido inverso, ele próprio viveu e escreveu em absoluta liberdade, fazendo e fazendo-se a si mesmo tudo aquilo que desejava.
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“As Criadas” foi a primeira peça do seu repertório a ser encenada, em 1947. Estruturada num só acto, em cena encontramos Solange (mais velha) e Clara, as criadas do título, irmãs e intimas numa extensão que supera todas as expectativas. A outra personagem é a Patroa, que surge apenas na 2ª metade da peça.
Neste triângulo feminino, estabelece-se desde cedo uma estranha e incómoda demência tornada normalidade. As duas irmãs, na ausência da patroa, constroem simulações violentas de domínio e submissão, aparentes tormentos sexuais e emocionais para quem assiste, mas naturais como a lide doméstica para o improvável duo, em que se vão revezando nos seus papéis, assumindo à vez o papel da patroa, usando os seus vestidos, espalhando flores pelo soalho, agredindo de todas as formas em que a agressão pode ser exercida, até ao limite da sanidade. A rotina está de tal modo sistematizada, que Clara traz um despertador para a sala onde estão, programado para tocar a tempo de arrumar tudo antes da chegada da patroa.
Da conversa entre ambas, acusações mútuas revelam um plano constantemente adiado para assassinar a patroa e uma conspiração para a isolar do seu amante, cuja prisão foi assegurada por Solange, através de uma denúncia e de cartas anónimas falsificadas, embora nunca seja revelado qual o crime em causa.
O amante é libertado e contacta a patroa para um encontro. Frenéticas, as criadas planeiam de imediato envenenar a patroa, mas nada corre conforme o planeado.
No texto original, tudo se desenrola numa sala ricamente mobilada, com móveis Luís XVI, vestidos de gala, jóias e outros acessórios, a que as criadas apenas acederiam no cumprimento dos seus deveres. Na encenação eficaz e minimalista de Rui Madeira, pela Companhia de Teatro de Braga, na Casa das Artes do Porto, a acção decorre numa cela, com as criadas vestidas de prisioneiras e a patroa com uniforme de guarda prisional. A relação de dominação e submissão, do carcereiro face ao prisioneiro, é levada às últimas consequências, com a tensão fortemente sexualizada a evocar o imaginário sado-masoquista, correspondendo assim a uma interpretação mais literal do desequilíbrio de poderes em causa e agudizando o desconcerto perante momentos em que essa dialéctica é deliberadamente derrubada e sucessivamente subvertida.
As “peças dentro da própria peça”, “encenadas” pelas criadas, emulam a relação desequilibrada que a patroa mantém com ambas, verdadeiros actos de raiva, desespero, desprezo (por si mesmas, pela condição em que se encontram irreversivelmente encarceradas), mas também de paixão, desejo e libertação.
A mecânica do poder é transportada para este tríptico destrutivo, em que a correspondência entre o que é dito e o que as palavras encerram raramente tem correspondência total. Há uma verdade exclusiva àquelas personagens, naquele contexto específico, que torna quase obsceno qualquer mecanismo hermenêutico de extrapolação e interpretação, tendência natural do espectador ou crítico, perante o que parece escapar ao seu entendimento. No entanto, tentá-lo torna-se inevitável.
“As Criadas” teve por inspiração um caso que chocou a França em 1933. As irmãs Papin assassinaram, com requintes de brutalidade, a sua patroa e a filha adulta, despertando na esquerda gaulesa uma rápida interpretação dessa inaudita violência como sinal de revolta contra a desigualdade em que viviam. Não parece ser o caso, embora a interpretação seja lícita e verosímil. O vazio emocional que transparece de todo o texto, indicia antes uma angústia faminta por algo sempre fora do alcance, substituída pelas sucessivas fantasias eróticas de controlo, obediência e redenção sobre a única coisa de que ainda podem livremente dispor: o seu arbítrio.
A fisicalidade e a aparente incoerência do enredo, com as palavras tantas vezes a indicarem acções e personagens díspares, remetem-nos para o teatro do absurdo, mas também para o teatro da crueldade de Artaud, em que o choque é propositado, a ilusão se sobrepõe à realidade e o palco é um jogo de espelhos, de que cada um retira o que se lhe aprouver, sem a rigidez de um sentido unívoco. O que percepcionamos é nosso e, assim como entre as criadas, também o exterior se dissolve.
Como dizia Artaud, na sua obra seminal O Teatro e o seu Duplo “O que queremos é denunciar este conjunto de sonhos, ilusões e crenças de que resultou esta mentira em que já ninguém acredita, chamada, provavelmente por troça, teatro. Gostávamos de ressuscitar determinadas imagens – óbvias, palpáveis, sem o contágio da desilusão contínua. Não críamos teatro só para apresentar peças, mas para revelar aspectos obscuros e escondidos da mente, através de uma espécie de projecção real, física.”
Propositadamente ou não, Genet vai ao encontro deste mantra de Artaud.
A estrutura e a tradicional “história” perdem a relevância, perante a construção de um acontecimento, uma realidade cujo significado e valor único está encerrado em si mesmo, como as empregadas na sua condição ou nós, testemunhas/espectadores, na nossa.
Sobre o teatro, Genet não poderia ser mais explícito na sua perspectiva. “Estou-me nas tintas. Quis fazer peças de teatro. Cristalizar uma emoção teatral e dramática. Se as minhas peças servirem os negros, não me importa. De resto, não acredito nisso. Acho que a acção, a luta directa contra o colonialismo faz mais pelos negros que uma peça de teatro. E também acho que o sindicato do pessoal doméstico faz mais pelas criadas que uma peça de teatro. Procurei fazer ouvir uma voz profunda que os negros e as demais criaturas não conseguiram fazer ouvir. Um crítico disse que “as criadas não falam assim”. Falam assim. Mas só comigo e à meia-noite. Se me disserem que os negros não falam assim, responderei que ouviremos mais ou menos aquilo se encostarmos o ouvido ao seu coração. Temos de saber ouvir o que não está formulado.”
A persona de Genet, misto de fábula e realidade, é fascinante pela reticente superação que encerra, liberdade e libertinagem em livre associação durante uma vida repleta de aventura e tragédia, consagradas numa escrita fulgurante e original, sem os obstáculos convencionais do enredo, da coerência psicológica, ou da ditadura da correcção moral e social.
Os movimentos de transformação, ilusão, ritualização e a fluidez de identidades são chaves essenciais para a compreensão dos párias que povoam o seu trabalho literário e dramático, meros peões, ratos correndo em esforço numa roda sempre em movimento, irreversivelmente condenados a espirais auto-destrutivas, verdadeiros cocktails-molotof ainda hoje explosivos em qualquer palco, pela sua imprevisibilidade e pelo desafio constante do seu verbo e conduta.
Melhor do que alguma vez poderíamos aspirar formular, Sartre, no seu incontornável “evangelho segundo Genet”, declara, com a pompa que só os grandes se podem dar ao luxo de utilizar: “Só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa na sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta contra o destino, primeiro esmagada pelas suas fatalidades, depois voltando-se contra elas, digerindo-as pouco a pouco (…) provar que o génio não é o dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, da sua vida e do sentido do universo”.
Sempre usando da razoabilidade que as lendas impõem, a obra de Genet impõe-se por si, e esta “As Criadas” é a fundação de uma abordagem da arte dramática que recusa cedências perante a mais absoluta liberdade, estendendo assim sentidos e percepções para além dos limites até ali tidos por estáveis e invioláveis. Setenta anos após a sua estreia, a sua irrefutável actualidade e versatilidade, comprovadas pelo espectáculo cuidado a que assistimos, residem no poder das suas palavras, tornadas símbolos maiores do que os seus possíveis significados. A sensação de intemporalidade ressalta dessa saudável irresponsabilidade, de quem tem a perfeita consciência do seu lugar na pesada engrenagem da dialéctica constante a que chamamos Vida, e sabe como poucos deixá-la nua, em toda a sua vulnerabilidade e solidão.
Fácil seria chamá-lo pessimista e imoral. Preferimos audaz e generoso, pois mesmo cúmplice dos pequenos horrores da Humanidade, recusou render-se e ofereceu-nos de forma sublime a última palavra.
A partir de Março, esta encenação de “As Criadas” viaja para Évora, Badajoz, Cáceres, Almada, Faro, Sevilha, Covilhã (em Novembro) e Valência.
Foto: João Vilares