AS DAMAS DA NOITE, UMA FARSA DE ELMANO SANCHO, em palco na sala estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, é uma deliciosa incursão pelo mundo do transformismo e das drag queens. O espectador é recebido por uma figura híbrida, uma mulher de barba que, enquanto põe música e a anima com gestos femininos e provocantes, simultaneamente sintetiza uma das mais básicas carências sociais: a catalogação. É precisamente esta “mania da inventariação” que é totalmente reduzida a cinzas quando o espectador, envolvido pela magnífica ambiência e espectacular banda sonora, deixa finalmente de perguntar se está perante um homem ou uma mulher e aprende a aceitar o que está à sua frente, quem está à sua frente, entregando-se sem defesas a uma trama acutilante, corajosa e arrebatadora.
As Damas da Noite são seres híbridos e encantadores, desafiadores de fronteiras, preconceitos e tabus. Desfilam num magnífico guarda-roupa, com uma elegância tão feminina que transcende o feminino! Quantas mulheres, afinal, chegam aos calcanhares de Lexa Black?!
Na construção de cada uma das personagens, de cada uma das mulheres ficcionadas,tomamos consciência do detalhe necessário ao «nascimento» de cada uma daquelas mulheres: o que vestem, que gestos usam, como se movimentam, que línguas dominam, qual o seu passado, que desejos, que ambições. É um verdadeiro processo de criação de um «alter-ego», reproduzido com espantosa mestria e simplicidade ali mesmo em frente do espectador, através da arte da maquilhagem, do vestuário, da colocação de voz, do recurso ao playback, este, aliás, feito com tal mestria que nos garante verdadeiros momentos de um belíssimo show musical.
O que obsta então à tentativa de dar à luz Cléopâtre? O que a distingue das outras duas drag queens,LexaBlack e Filha da Mãe? Porque demora a surgir Cléopâtre?
Cléopâtre é a filha desejada que não nasce, a figura irreal de uma mulher que é imposta a um homem real e que o leva a procurar no transformismo a aceitação, a recriação. Cléopâtre é uma imposição brutal e talhada num logro. Não é a sua história, não o define, é a imagem e a vida que para ele inventaram. Não é o seu alter-ego. Por detrás de cada uma daquelas damas da noite existe outra metade de um “eu”, meta de tão amada que é delineada até à exaustão do detalhe, até ao surgimento de uma verdade, dir-se-ia. Ora esta a verdade não se compadece nem com a violência nem com a mentira. Somos o que somos, somos até porventura o que queremos ser mas jamais o que os outros pretendem que sejamos.
Momentos apoteóticos, o de Lexa Black nuns impossíveis sapatos altos por certo retirados do closet de Lady Gaga e o comovente diálogo de “quase” Cléopâtre com a sua falecida mãe. Porque os anjos não têm sexo os mortos vivem libertos desse jugo.
Referência última ao escrupuloso cumprimento das regras de segurança motivadas pela pandemia, uso de máscara obrigatório e distanciamento social garantido, detalhes tão desconfortáveis e penosos quanto necessários mas de resto prontamente afastados do pensamento pelo extraordinário espectáculo que nos é proporcionado!
Ficha Técnica
texto e encenação Elmano Sancho
espaço cénico/set design Samantha Silva
desenho de luz/lighting design Alexandre Coelho
assistência de encenação/assistance direction Paulo Lage
produção executiva/executive production Nuno Pratas
interpretação/cast Elmano Sancho, Dennis Correia aka Lexa Black, Pedro
Simões aka Filha da Mãe.
co-produção/co-produced by Casa das Artes de Famalicão, Culturproject,
Loup Solitaire, Teatro Nacional D. Maria II, TNSJ.
dur. aprox./playing time 1h
M/16
Foto © Sofia Berberan
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