A reedição de As Elegias de Duíno, em tradução a cargo de Maria Teresa Dias Furtado – que tem assinado distintas traduções não só de Rilke, mas também de autores como Hölderlin –, volta a disponibilizar entre nós a «obra maior» (p.9) do poeta nascido em Praga, cidade onde, apenas oito anos depois de Rainer Maria Rilke, viria a nascer Franz Kafka. Como se sabe, quer um, quer o outro, se tornariam alguns dos mais elevados cumes da literatura escrita em alemão. A prosa de Kafka e a poesia de Rilke – autor, igualmente, de obras em prosa e mesmo de literatura de viagens (de que temos um exemplo editado em Portugal em Viagem Singular a Worpswede, Feitoria dos Livros, 2016, trad. João Barrento) – são florescimentos absolutamente notáveis, embora possamos integrá-los no mais amplo panorama de um complexo social, histórico e, naturalmente, cultural, centralizado no que se convencionou chamar Mitteleuropa, nomeadamente no que então se situava nos limites do Império Austro-Húngaro. Ou como o pôs Jorge de Sena, «Rilke é um produto da cultura do Império Austríaco, e um dos grande poetas da língua alemã» e «veio a ser um dos mais infuentes poetas europeus do século [XX] e alvo de um culto internacional que ainda hoje dura» (Poesia do Século XX (De Thomas Hardy a C.V. Cattaneo), Editorial Inova, 1978).
As Elegias do Duíno são, na fórmula memorável de Maria Teresa Dias Furtado, «a grande sinfonia da sua vida e do seu tempo, percorridos pela inquietação e pela angústia, dilacerados pela Primeira Guerra Mundial» (p.9) e «elo de união entre todas essas realidades diversas» (id.). O Castelo de Duíno um dos locais de romagem deste permanente nómada – sempre na órbita dos mais poderosos e afluentes, um pouco como Goethe, um pouco mais de cem anos antes dele –, onde a mais brilhante aristocracia da capital e do espírito se congrega, «e até D. Manuel II de Portugal» (p.11), como nos lembra a introdução da tradutora.
As Elegias possuem um dos arranques mais perduráveis da poesia ocidental, ao mesmo tempo inconfundível e tornado uma divisa quase a clamar por um pastiche: «Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias/ dos Anjos?» (p.45) De resto, a memorabilidade deste livro de Rilke patenteia-se em mais do que um trecho das Elegias, nomeadamente no ubíquo «Todo o Anjo é terrível.» (p.53). Estes poemas de Rainer Maria Rilke elegem caminhos que preservam, quando se olha para trás, o mistério em que se fundam, o enigma insolúvel que parece ser uma grande medida da sua sustenção. É, de resto, o poeta quem afirma, diz-nos a sua tradutora: «E sou eu que tenho de dar a verdadeira explicação das Elegias? Elas ultrapassam-me completamente. Considero-os um aperfeiçoamento na sequência daqueles pressupostos essenciais já presentes n’O Livro de Horas» (p.14). O poeta e a sua poesia são, porventura, agentes da construção de um brilhante estado de desconhecimento activo. Esta visa interceptar o colóquio da vulgaridade, atravessando-o com um dizer que, partindo embora da norma, extrapola esse mesmo limite. O seu peculiar entendimento do modernismo, que Rilke ajudou a forjar, suspende-se numa identificação nada óbvia do que ainda se pode designar por sortilégio do poema. O «mundo interpretado» (p.45), que comparece num dos seus versos, é, ao mesmo tempo, oportunidade de situar o poema e ocasião de suplantação. Ou seja, os poemas de Rilke, não renegando o que é do mundo, estão em permanente testagem dos limites desse mesmo plano terreno.
Essa concepção de poesia, por sinal, centra-se por vezes em componentes que pertencem, decisivamente, à esfera terrena, como se o poeta estivesse a fazer uma espécie de física do metafísico, como quando canta «o vento, cheio do espaço do universo» (p.45), ou ao notar como «no animal, vigilante e quente,/ há o peso de uma grande melancolia» (p.99). Rilke está, na verdade, em diversos pontos destes poemas, numa linha de tensão que aproxima, mas também distingue, o circuito concreto e as extrapolações da imaterialidade. O poeta leva a termo esse desígnio, em certos momentos, inclusive, numa utilização penetrante de termos topográficos para alcançar o que está para lá de qualquer geografia ou espacialidade – «Ó Anjo! Se houvesse uma Praça, que desconhecêssemos, e lá,/ sobre tapete individual, mostrassem os amantes» (p.81); «que estranhas são as ruelas da Cidade da Dor,/ onde no silêncio falso, feito de tumulto,/ com violência emerge, ostentando-se do molde de fundição do vazio,/ o esgoto: o ruído dourado, o monumento que estala» (p.109). As composições que formam As Elegias de Duíno constituem um conjunto de reflexões e perplexidades, enquadradas pela encenação de uma crise pessoal que prefigura, ou repercute, uma terrível crise espiritual de mais ampla dimensão, por ser abrangente, epocal – «Comeste-os, os grãos da tua morte,/ como todos os outros grãos, comeste os seus grãos,/ e ficaste com um ressaibo de doçura em ti,/ que não tinhas querido, tinhas os lábios doces,/ tu: quem já dentro nos sentidos era doce.» (p.130)
Estes poemas são a expressão gloriosamente esmerada de um tempo e de um lugar deixados à beira da destruição. Publicadas em 1922, as Elegias, na sua poderosa subjectividade, ecoam a dolorosa objectividade de uma Europa arrasada pela Primeira Guerra Mundial. Estes poemas encontram-se sulcados, no mais fundo do seu âmago, no íntimo dos seus processos, por uma noção de iminência do fim de um certo mundo, ou uma certa ideia de mundo – que, efectivamente, foi uma realidade duramente concreta da História, na sequência da Primeira Grande Guerra. A grandeza que eles alcançam, o conseguimento estético de que são capazes, são um dos exemplos de que a arte por vezes dá da possibilidade de prosseguir lado a lado com a ruína e, em certos momentos de maravilha, poder elevar-se um pouco acima do desespero nihilista. As Elegias do Duíno são um desses casos notáveis.
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