Publicada quando Irène Némirovsky contava apenas com 28 anos, As Moscas de Outono confirma o motivo pelo qual a autora foi tão justamente considerada «sucessora de Dostoievski» e aprendiz de Tolstói.
Como tantas famílias nobres, aquando da Revolução Russa, os Karine veem-se obrigados ao exílio e a sobreviver despojados da opulência e luxo que outrora os rodeava. Em Paris, onde acabam por se instalar ao cabo de algum tempo de fuga, sem dinheiro, perdido o rumo, um filho e todo o estatuto social, são como moscas de outono, tão longe do sítio onde nasceram e voando «contra os vidros, arrastando as asas mortas».
Tatiana, velha ama e empregada de todas as horas, segue-os para o exílio depois de longamente lhes ter guardado a casa: «Nunca se haviam de esquecer do momento em que ela bateu à porta, quando a viram aparecer com o seu ar macilento e sereno, a trouxa às costas, os diamantes golpeando as pernas exaustas.» É ela a verdadeira gema desta narrativa, o corpo do passado que todos querem à força esquecer. Tatiana, porém, naquela cidade a que não consegue tomar o pulso, que não tem a temperatura corporal a que ela estava habituada, não sabe fazer outra coisa que não rememorar. É que ali é ela quem se sente mais perdida. Por isso, busca a neve como ponto cardeal, o manto branco, a morte que precede a renovação, a pureza acutilante do gelo, mas o que encontra é só «uma película fina de pó, uniforme, que […] cobre os objetos» e «pesadas gotas de chuva a escorrer nos vidros como uma torrente de lágrimas».
Narrativa belíssima sobre a memória, a saudade de um tempo mas principalmente de um lugar, este relato sobre a decadência de uma família, as metamorfoses de um país e a resiliência de todo o ser humano mostra-nos como um coração forçado toda a vida a cuidar dos outros deixa de saber distinguir servos e amos, porque se deu de beber em afeto como leite.
É ler para entender que grandes obras não se medem em linhas.
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